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A POSSIBILIDADE DA CONDENAÇÃO AFIANÇA A LIBERDADE

foto Gilberto Rodrigues

  A OBRA

DOSTOIÉVSKI, Fiódor.  Crime e Castigo
 
568 p. – Coleção Leste
Tradução: Paulo Bezerra
[Traduzido diretamente do Original Russo, Obras Completas, tomo VI, Ed. Naúka, Moscou-Leningrado, 1978.]
São Paulo – Editora 34, 2001.

O crime, para não se perpetuar, para inibir o desenvolvimento de um processo destrutivo, ou de auto destruição, reclama incondicionalmente um castigo. Princípio básico, evolutivo, desenvolvido para  garantir a preservação e a perpetuação da espécie. Encontrar uma pessoa que tenha consciência de que cometeu um crime não é uma obra do acaso, nem mérito do perseguidor, mas uma necessidade vital do criminoso.

          A transgressão cometida enraíza-se na alma como erva daninha, das mais perniciosas. A consciência, sabendo-se culpada, saboreando a culpa  e responsabilizando-se pela transgressão, não retorna à paz se um castigo não lhe for imputado. E não pode ser qualquer castigo. Ele deverá vir, obrigatoriamente, da parte de quem foi lesado ou de quem garantirá que tornará público para aqueles que souberam da lesão, para que eles, sabendo agora da punição, estabeleçam a relação com o castigo e reafirmem a certeza de que, mais dia, menos dia, todos farão seus acertos de contas, pagarão suas dívidas e perceberão seus créditos. Não é por curiosidade, simplesmente, que o criminoso sempre retorna ao local do crime. Ele retorna para ser identificado e garantir o reconhecimento, para, posteriormente, ser detido, julgado e condenado. Para certificar-se de que cuidou de tudo para ser castigado. A fuga somente será empreendida e bem sucedida se houver a certeza de que pistas efetivas foram deixadas para que os responsáveis pela feitura da justiça a percebam e passem, a partir daí, a dar cabo da apreensão do criminoso e à aplicação da pena correspondente ao crime cometido. Não basta somente o castigo. É vital que ele venha proporcional e diretamente correspondente ao crime cometido, de fato, ou  àquele que fora “julgado” como tal.

          O que se apossa primeiramente da alma humana? Uma necessidade interna, primitiva, do crime ou uma necessidade interna, primitiva, do castigo? Podemos dizer que, para o crime, seja  qual for, não há necessidade correspondente. A não ser enquanto exceção, em casos onde haja, por parte do criminoso, o padecimento de alguma patologia de maior gravidade. Porém, para o castigo é diferente. Reclamamos punição para várias coisas que fazemos e as consideramos erradas, ou para aquelas que omitimos e a omissão nos parece errada, independente de terem ou não ocorrido de fato. A não compreensão dessa necessidade e de como supri-la nos instiga a uma transgressão que, sendo efetivada e tornada pública, desencadeará a punição correspondente. Primeiro a pessoa sente que precisa ser punida por um crime que tenha cometido contra si mesma, de forma física ou psicológica, consciente ou não. Para garantir que a punição, que o castigo seja levada a termo, cuida para que essa transgressão seja externada, justificando e garantindo, assim, a devida punição, o correspondente castigo. O castigo pelo crime amedronta muito menos o criminoso […] porque ele mesmo o reclama (moralmente), escreveu Dostoiévisk a M. Kátkov, expondo a idéia do romance.[1]

Raskólnikov, personagem principal da obra e que empresta sua consciência para o autor estabelecer o palco para o seu drama, não padecia de nenhuma patologia e nem cometera um crime para garantir a punição correspondente a uma culpa que vivenciava interiormente. Vê só: eu queria tornar-me um Napoleão e por isso matei … Então, agora dá para entender? Vejam, essa era a razão para o crime de Raskolnikóv!

          Dostoiévski, numa crítica severa ao privilégio da burguesia, e à forma discriminatória como os povos julgavam seus pares, nos coloca, ao longo da sua narrativa, questionamentos profundos e atuais: Por que um crime não é igual? Por que o diferencia, o assassino, ou o morto? Por que, dependendo de quem mata, há um tratamento diferenciado? Ou, dependendo de quem foi assassinado há, também, tratamento diferenciado? Favorecendo ou punindo uma das partes? Empresta ao seu personagem principal a capacidade de transgredir o quase impossível de transgressão: um crime para comprovar uma tese. É em torno dessa premissa que Dostoiévski faz de Crime e Castigo um clássico que conquistou seu espaço nas grandes bibliotecas mundo afora e no coração de todos nós, leitores com paixão pelo conhecimento da alma humana.

          Raskolnikóv explica assim o que aconteceu: O negócio foi o seguinte: certa vez me fiz uma pergunta: o que aconteceria se, por exemplo, no meu lugar estivesse Napoleão e, para começar a  carreira, ele não tivesse nem Toulon, nem o Egito, nem a travessia de Mont Blanc, mas em vez dessas coisas bonitas e monumentais houvesse pura e simplesmente alguma velha ridícula, usurária, que ainda por cima ele precisasse matar para lhe surrupiar o dinheiro do cofre (para a sua carreira, está entendendo)? Pois bem, será que ele se atreveria a isso se não tivesse outra saída? Não ficaria enojado por ver que isso não tinha absolutamente nada de monumental e… era censurável? Pois bem, eu te digo que sofri durante um tempo terrivelmente longo com essa  “questão”, … 

Nesse mesmo diálogo, com Sônia, um pouco mais adiante ele define quem matara:

_ Acontece, Sônia, que matei apenas um piolho, inútil, nojento, nocivo.

_  A pessoa é um piolho!?

_ Ora, eu também sei que não é um piolho, – respondeu ele, fitando-a de maneira estranha _ [ …][2]

_ Naquela ocasião, Sônia – continuou ele entusiasticamente -, eu adivinhei que o poder só se deixa agarrar por aquele que ousa inclinar-se e tomá-lo. Aqui só há uma coisa, uma só: basta apenas ousar! Então, pela primeira  vez na vida, me vinha à imaginação uma idéia que antes de mim ninguém jamais havia imaginado! Ninguém! Eis que me pareceu claro, como o sol: como é que ninguém até então, ao passar ao lado de todo esse absurdo, havia ousado e não ousava pura e simplesmente agarrar tudo pelo rabo e arremessar para o diabo! Eu… quis ousar e matei… eu só quis ousar, Sônia, eis toda a causa!

_ Ora, cale-se, cale-se! – exclamou Sônia erguendo os braços. – o senhor se afastou de Deus e Deus o golpeou, o entregou ao diabo!…

_ Aliás, Sônia, quando eu estava deitado no escuro e tudo isso se me afigurava, foi o diabo que me perturbou? Foi?

_ Cale-se! Não ria, blasfemador […]

          O crime é sempre crime ou depende de quem o comete? A justiça é sempre justiça ou depende de quem lhe fica à mercê?

          Raskólnikov caminha para o apartamento de Aliena Ivánovna com a idéia fixa de matá-la. Napoleão também marchava cavalgando à frente de seu exército. Ambos marchavam para matar. Ambos mataram. Um seria herói, o outro criminoso. O que os diferenciava?

          Raskólnikov levava sob o sobretudo o machado amarrado, caprichosamente disfarçado, mas não a ponto de fazê-lo esquecer de suas intenções. Entrou amigavelmente na casa de Aliena. A velha dera-lhe as costas buscando a luz da janela para ver melhor o objeto, um penhor, que Raskolnikov trouxera e deixava-lhe a mão. O golpe acertara em plenas têmporas, […] Ela deu um grito, mas muito fraco, e súbito arriou inteira no chão.[3]  Ele então buscou as chaves da cômoda do quarto e tentou abri-la. Pairou-lhe uma dúvida quanto se matara mesmo aquela velha e voltou então à sala para certificar-se. Via claramente que o crânio estava esfacelado e até levemente deslocado.[4]

          Voltou para ver se conseguiria abrir a cômoda do quarto, embora não tivesse nenhuma obsessão para roubar alguma coisa. Lembremo-nos  de que o propósito de seu ato tinha, consideremos desta forma, até um caráter filosófico. Raskolnikov queria confirmar uma tese. Porém, como sempre nos ocorre quando estamos transgredindo os princípios da nossa consciência ela, como que para preservar nossas vidas, reserva-nos peças surpreendentes que não foram incluídas em nossos planos. Que não foram previstas. Raskolnikov pensara em apenas um crime. O que seria suficiente para a sua tese. Apenas uma morte lhe bastaria. As circunstâncias ofertaram-lhe duas. Poderia ter optado, porém, … Súbito soaram passos de alguém no cômodo onde estava a velha […] De repente ouviu-se nitidamente um leve grito […] subitamente deu um salto, agarrou o machado e saiu do quarto correndo. No meio do cômodo estava Lisavieta em pé …[5] Lisavieta era a irmã de Aliena Ivánovna que acabara de chegar e, inteiramente branca, olhava para o corpo da irmã derramado e semicoagulado sobre a enorme e vermelha poça de sangue. O golpe foi direto no crânio, de lâmina, e de uma só vez abriu toda a parte superior da testa chegando quase às têmporas. E ela desabou.[6]

          O crime, Dostoiévski nos conta  na primeira parte desta obra. Nas restantes quatrocentas e cinqüenta e oito páginas, divididas em mais  seis partes, o autor desenovela dramas existenciais e psicológicos sobre os seus personagens. Personagens todos de nós mesmos.

          A trama consiste, densa  e profundamente alinhavada, na tentativa do assassino de entregar-se para reparar o seu crime, para ser devida e corretamente punido e na resistência, na total incapacidade de ser acreditado pelas pessoas a quem derramava pistas inquestionáveis sobre o crime que cometera. Dramaticidade permeia toda a obra. A ânsia e a necessidade da confissão submergia perante o medo de ver-se preso. Por outro lado, não suportava a certeza de que tinha que pagar a dívida contraída que via protelada a cada dia, a cada tentativa.

          Dostoiévski leva-nos então a partir daí, juntamente com Raskolnikov ao final da obra. Prende-nos. Como ao nosso condenado, joga-nos nas galés, raspa-nos a cabeça, veste-nos uniformes de retalhos para reconduzir-nos depois a um momento de clímax. Ao momento de descobrirmos, enfurecidos ou piedosos, que, se não soubermos cultivar a liberdade que é própria, e propriedade de nós, a desfrutaremos  somente após termos conseguido que a nossa sociedade nos julgue, condene e sentencie-nos a pagar por nossos crimes nas prisões desumanas. Então, lá, presos com Raskolnikov, experimentamos a liberdade. Em plenitude. Mas ouça-me, como se na quietude de uma noite bela, de lua cheia, e na calma peculiar de momentos assim reflita: será que precisamos ser agrilhoados para darmos conta da possibilidade de sermos livres? Não haverá um modo mais inteligente de descobrirmos os caminhos da liberdade? Será que foram mesmo assim traçados os caminhos de cada um de nós pelas nossas estradas vida afora?

          Esta obra é de leitura obrigatória para todos que gostam de um bom romance e apreciam partilhar do inconsciente coletivo de admiráveis escritores. Para todos  que querem conhecer um pouco mais os meandros da alma humana em seu percurso pelos caminhos do seu destino sob o jugo da solidão, da pobreza e da culpa. Porém, aqueles que optaram por exercer uma atividade profissional que constela a área das Ciências Jurídicas devem, se ainda não o fizeram, esmiuçar Crime e CastigoA compreensão, de uma fração que seja, da alma de quem entra pelos nossos tribunais com as mãos enlaçadas por algemas e conduzidos pelos homens que representam a lei e a ordem, fará de cada um de nós, estudantes ou já profissionais do Direito, pessoas mais humanizadas e conseqüentemente, mais humanas. Quem sabe uma leitura como  essa nos aproxime sobremaneira daqueles  que estarão à nossa frente nos tribunais, na condição de réus confessos ou condenados indefesos, e nos possibilite ser mais justos, menos intransigentes e, quiçá, menos onipotentes – a justiça será, então, feita com mais sabedoria e o próximo será visto como um próximo mais digno do nosso amor e da nossa compaixão. Se os olharmos com atenção de fato, humana, veremos naqueles olhos talvez nada mais que anjos cruéis que quiseram ousar, compreender a vida, amarem a si próprios. Ou serão vítimas da falta de compreensão de nós outros, “bem-vividos”? Os veredictos então, se de fato sustentados no máximo que nos for possível da compreensão sobre o ser humano, darão mais brilho e sentido aos castigos estabelecidos e nos farão a cada dia menos criminosos. Menos Miseráveis.



[1]  Nota 39, p. 428

[2] p.425

[3] p.91

[4]  p.92

[5]  p.93

[6]  p.94

Certos Lugares

foto Gilberto Rodrigues
 
Do lugar de onde me olha
Enxergará somente você
E crendo que é a mim que de fato vês
Falas do que sou fui e não serei 
Do lugar que você me olha
Pouco importa qualquer coisa que eu seja
Pois deste lugar não me alcançam teus olhos
E por não me verem
Medem-me com tamanha precisão 
 
Tornei-me o que no momento precisas enxergar
Pra que deste lugar não tenhas que descer
 
Tornei-me o necessário para as tuas justificativas
Não te importa como pulsa em mim a minha vida 
Do lugar em que me olhas caminhando no tempo
Teces conclusões que neste lugar te justificam
Construíste assim teu jeito de olhar para tornar-te assim
Construindo tuas certezas sobre as incertezas de mim.
  • Data: 18 set 2011
  • Em: Poemas
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Viola Encantada

Música de João Ormond e letra de Gilberto RodriguesGravada em 2004, CD “Viola Encantada”

gilberto-rodrigues-post-viola-encantada

 Igual folhas secas a voar aos ventos
Vive um violeiro a mercê de sua viola
Ela lhe educa a mão ensina os caminhos
Oferta as canções e lhe toca à vida
Se o violeiro cresce ela junto caminha
Vai lhe abrindo as portas com segredos de luar
Ela só não lhe ensina se ele a abandona
Ou não lhe acarinha com muito bem querer
Todo dia ela convida o seu par o violeiro
A entoar novos caminhos pra desvendar novos segredos
Fascinado o violeiro lhe entrega os seus sonhos
E na viola encantada suas cordas vai afinar
 
Igual folhas secas a voar aos ventos
Vive uma viola a mercê do violeiro
Prisioneiro em dez cordas liberto numa toada
Esperando em um ponteio ser de novo aprisionado
Se a viola e o violeiro já selaram uma jura
Se liberta o violeiro pra na viola se prender
Nunca mais ele a abandona pois é agora a grande nau
Que conduz seu coração aos rincões da sua alma
 
Ela vive a seduzir aquele colo encantado
Pois não seria uma viola se uma alma num afinasse
Quem se encanta com a viola vai mais fundo de si mesmo
E muito além do fim do céu
Vai ao encontro da sua própria alma.
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“ … PENSAR É A PRIMEIRA NECESSIDADE; A VERDADE ALIMENTA TANTO QUANTO PÃO .”

 

foto Gilberto Rodrigues

Resenha

A OBRA

HUGO, Victor. Os Miseráveis

2 vol. – 1.276 p.
Tradução e Notas: Frederico Ozanam Pessoa de Barros
Apresentação: Renato Janine Ribeiro
Edição conjunta: Cosac & Naify, 2002, SP
Casa da Palavra , 2002, RJ
 
Emocionado, partilho com Marius e Cosette a morte de Jean Valjean. Os olhos marejam pela beleza e pelo vazio da obra finda, por não ter mais, amanhã, Os Miseráveis à mão. Queria tanto terminá-lo e agora o quero, tanto, interminável. Pena que, como na vida, tudo chega ao seu termo. Acabou. Haverá outra obra como essa? Jamais. Tomarei outra, com outros encantos, outras emoções, outras angústias. Ao vogar pelos Miseráveis sinto-me como Jean Valjean quando, para se redimir perante si mesmo e seus entes queridos, que nem eram “seus”, atravessou os esgotos de uma Paris fétida em suas entranhas e banhada em sangue fraterno de uma revolução miserável, cheia de medos e sonhos de liberdade, em sua superfície. Como ele, saio redimido. Passei pelos Miseráveis – torno-me um pouco menos miserável – algo novo dá-se em minh’alma.

          Leva-nos obra afora, a indiscriminação que ela apresenta entre a realidade e a ficção. Linha a linha, palavra a palavra. Conduz-nos, esperançosos ou revoltados, pelos emaranhados de tantas páginas, como prisioneiros perpetuamente condenados, pois peia-nos a atenção com emoções encordoadas, o perigoso e inofensivo Jean Valjean juntamente com todos que constelam por seu percurso, direta ou indiretamente. Ah! Creiam, são percursos que caminham como nossas próprias vidas. São cheios de encontros, desencontros, acertos, perdas, certezas, indecisões, indefinições. A ficção mesclada à história vai sulcando no leitor as marcas que deixam na alma da gente uma grande obra literária. Jean Valjean  é aquele herói anônimo, cidadão comum, ser humano como todos nós. E, como todos nós um dia, também transgrediu. Roubara, numa noite silenciosa de uma janela descuidada, um pão para saciar sua fome miserável. A sociedade, zelosa de si mesma, muitas vezes até  mais do que com as pessoas que a constituem, apodera-se dele, julga-o e o condena. Além de pagar, sobejamente a sua pena, dezenove anos como grilheta nas galés, e de regenerar-se na alma, no espírito e nas intenções, de novo a sua sociedade, raivosa e desumana, o persegue feito a uma besta-fera pela transgressão da sua condicional. Alertem-se! Que tanta periculosidade há em quem rouba para saciar a fome!? Há miséria maior que essa? É uma  perseguição em nome da lei e da legalidade, mesmo contrariando a consciência que, como se autônoma, insistia em iluminar o discernimento do perseguidor legal. É importante que vejamos como o representante da ordem e da justiça, perseguindo em nome da lei e pela lei, se desenredou de seus conflitos. A justiça não escapa, também, de suas nuanças prenhes de atrocidades indecifráveis.

          Javert, inspetor de primeira classe da polícia de Paris, em 7 de junho de 1832 não suporta o confronto que lhe desencadeou o conflito que o deixou agonizante diante da escolha entre a própria consciência e as vozes do dever. Ao deparar-se com a presença, humanizada, de Jean Valjean que inclusive lhe poupara a vida quando poderia tê-la ceifado, vê descortinar, de modo incontornável algumas obviedades de descomunais incômodos. “Convencia-se de que então era verdade, que havia exceções, que a autoridade podia ser confundida, que a regra podia ser insuficiente diante de um fato, que nem tudo se enquadrava  no texto do código, que o imprevisto exigia obediência, que a virtude de um grilheta poderia armar laços à virtude de um funcionário, que o monstruoso podia ser divino, que o destino armava emboscadas, e pensava com desespero que ele próprio não estivera ao abrigo de uma surpresa.

          Via-se obrigado a reconhecer a existência da bondade. Aquele grilheta tinha sido bom. Ele mesmo, coisa inaudita, praticara um ato de bondade. Portanto, depravara-se. Sentia-se covarde. Sentia horror de si mesmo.

          O ideal para Javert não consistia em ser humano, em ser grande, em ser sublime; consistia em ser irrepreensível. Mas acabava de falhar.[1]

Então  quase paralisado, pois havia sido adestrado para a cega obediência ao dever, a norma, ao código, à lei, constata: “Existe então alguma coisa acima do dever.[2] Nada poderia desconcertar, desestruturar tanto aquele homem que sempre viveu pela lei e pela justiça quanto “ver-se obrigado a confessar isto: a infalibilidade não é infalível, o dogma pode conter erros, o código não é completo, a sociedade não é perfeita, a autoridade pode vacilar, um desacordo no imutável é possível, os juízes são homens, a lei pode enganar-se, os tribunais podem errar!”[3]  Javert constata, atônito, a falibilidade da lei. Da justiça dos homens. Lembremo-nos de que só lhe importava “ser irrepreensível”. Ser humano pouco se lhe importava. Porque de um lado estava sua consciência e do outro o dever e, não conseguindo colher o fruto que às vezes o bom senso germina em nossas almas e, ainda mais, temendo deixar de ser irrepreensível, não suporta a impotência de não lidar com estes fenômenos humanos comuns a todos nós, como a dúvida, a angústia, a incerteza, entrega-se a um gesto de coragem. Ou de covardia? Deixo-lhes livres, para ajuizarem e darem a sentença. Após esta longa e negra madrugada de 7 de junho, o representante, até agora irrepreensível, da lei, ignorado pela sociedade, pois era muito eficiente, que só sabia que podia jamais sacrificar, por motivos pessoais, as ordens do dever, vagueia à brisa do Sena. Victor Hugo nos instiga a observá-lo: “Javert ficou  imóvel por alguns instantes, olhando aquela abertura de trevas; contemplava o invisível com uma  fixidez que se assemelhava à atenção. A água rumorejava. De repente, tirou o chapéu e o colocou  sobre o parapeito, – situado por cima das corredeiras do Sena. Um momento depois, uma silhueta alta e escura, que de longe algum transeunte notívago poderia tomar por um fantasma, apareceu de pé sobre o parapeito, curvou-se para o Sena, tornou a erguer-se e caiu pesadamente nas trevas; seguiu-se um rumor surdo, e somente a sombra soube o segredo das convulsões daquela forma obscura que desaparecia no seio das águas.”[4] Ao terminar, atônito, este parágrafo, longe de esboçar sequer um ensaio de  julgamento à sanidade de Javert anotei no pé da página: quem deverá ser responsabilizado pela morte de Javert? Quem será declarado culpado pela morte de tão brilhante defensor da ordem e da lei?  

O conteúdo da lei ,  aquele cerne que expressa a vontade do povo, escrito por seus representantes, por muitas e estranhas vezes, quando é transgredido em correção  e integridade, não importando as intenções, torna-se mais cruel e perverso que os crimes que busca corrigir ou mesmo extirpar do seu meio. Esta sociedade legal, investindo um representante com poderes plenos, desde que não lhes crie problemas, caçara  Jean Valjean com ódio obstinado. Essa perseguição emoldurada de forma brilhante pela descrição do conflito de Jean Valjean entre persistir na busca da integridade  ou deixar-se levar pelos instintos primários que alicerçam a sobrevivência das espécies, é um dos pilares desta obra.

Em outra vertente, Victor Hugo retrata através de cada um dos seus personagens como os desencontros são, em umas vezes, nada mais que encontros intensos e vitais e como, noutras vezes, os encontros deixam-nos diante de valas incomensuráveis de desencontros doloridos e, quase sempre, sem volta. O  percurso da vida da menina Cosette, mulher desde pequena e criança mesmo adulta, em busca de si própria, mesmo sem o saber, e de um grande amor, mesmo sem saber da possível correspondência, ilustra essa constatação. Há ainda outros dois pilares significativos. Um são os conceitos e pontos de vista sobre assuntos do nosso cotidiano com um enfoque peculiar. Entre tantos, também de significativa importância, há abordagens expressivas sobre a Oração[5], a Bondade[6], a Fé e a Lei[7] o Direito[8], os Jardins e os Jardineiros[9], o Trabalho[10], sobre a Revolta[11], sobre a Liberdade, Igualdade e Fraternidade[12], e o Progresso[13].

O segundo, porém não menos importante,  é o palco onde Victor Hugo enreda-nos por seus devaneios recheados de genialidade: episódios históricos e preciosos da Revolução Francesa.  História e Ficção, como em nossas vidas, tecem, com ou sem o nosso consentimento, o enredo da nossa existência. O individual construindo o coletivo, ou vice-versa. Certeza haverá jamais sobre qual intervém mais, sobre qual se dá em primeiro plano e se há interferência a favor ou contra algum processo da evolução humana na ordem dessas coisas. O acaso prevalece, sempre e irremediavelmente, ao responder de forma invariável e com precisão às demandas da necessidade. 

Esta é uma obra a qual todos que buscam um pouco de compreensão da alma humana, que ousam mirar a própria alma, deveriam  desbravar. Ninguém  melhor que o próprio Victor Hugo para nos contar o que trata em Os Miseráveis.

” O livro que o leitor tem sob os olhos neste momento é, do princípio ao fim, no seu conjunto e nos seus pormenores, sejam quais forem as intermitências , as exceções ou os desfalecimentos, a marcha do mal para o bem, do injusto para o justo, do falso para o verdadeiro, da noite para o dia, do apetite para a consciência, da podridão para a vida, da bestialidade para o dever, do inferno para o céu, do nada para Deus. Ponto de partida: a matéria; ponto de chegada: a alma. Hidra no princípio, anjo no fim”.[14]  

Aqueles que se deleitam com um bom romance, com uma obra densa, profunda, com um conteúdo de ordem universal e muito bem escrito, devem ler Os Miseráveis;

Aqueles que buscam aprofundar os seus conhecimentos sobre os mistérios que norteiam a alma humana, como os poetas, os psicólogos, os filósofos, devem ler Os Miseráveis;

Aqueles que se embrenham pelas searas do Direito, sonhando com a Justiça que redime e liberta os povos, que busca ver o ser humano de forma integrada a própria sociedade e vice-versa, e que sonha enaltecer mais a pessoa que a letra fria da lei, devem ler Os Miseráveis;

Aqueles que buscam uma compreensão mais profunda de como se dá a interação do ser humano convivendo em sua coletividade, construindo-a, transformando-a, humanizando-a, como os sociólogos, os antropólogos, os políticos, devem ler Os Miseráveis;

Aqueles que crêem que a miséria pode ser muito mais cruel e indigna para o ser humano do que a miséria decorrente da falta de pão, de moradia, de trabalho, de uma família que possa chamar de sua, ou de uma pátria onde possa se emocionar ao ouvir seu hino, devem ler Os Miseráveis;

Aqueles que ainda ficam indignados com a miséria que brota dos impedimentos do exercício da plena liberdade de expressão do pensamento, da falta de dignidade e respeito humanos, da falta de ética nas relações entre as pessoas e que ainda ficam profundamente revoltados com o autoritarismo, com os desmandos na administração da coisa pública, com a hipocrisia política, devem ler Os Miseráveis;

Aqueles que ainda acalentam no âmago de suas almas um sonho de liberdade para que TODOS sobre a terra possam um dia ter nas mãos a possibilidade de escolher os próprios caminhos, devem ler Os Miseráveis;

Aqueles que ainda sonham, fazem canções, poemas, crêem, duvidam, cismam, questionam, perguntam, amam, … devem ler Os Miseráveis;

Que esta obra, como outras tantas deste quilate, nos ajude a redimir e orientar os miseráveis do século XXI que estão, com sua desmedida desumanidade e podridão de caráter à frente de instituições públicas, como hospitais, escolas, governos, …, contaminando outra parte da humanidade que só busca a dignidade da vida, que, além da fome, quer extirpar do nosso seio outros tipos de miséria, mais desastrosa e mais abominável. Aliás com a extinção desse tipo de miséria e dos seus criadores miseráveis, não haveria mais fome, nem guerra, nem solidão. O amor voltaria, sem medos, a campear corações entre nós!

Devem ler Os Miseráveis de Victor Hugo até para descobrir que os nossos miseráveis não inspirariam romances nem qualquer outra literatura que nos propicie reflexão e deleite, pois não têm bandeira, filosofia, propósitos nobres, ética, nem dignidade. Os nossos miseráveis só nos causam indignação, asco e repugnância.

Arme-se, portanto, e embrenhe-se  por estas páginas. Volte ao tempo, visite a França que embalava o berço de tantos direitos que foram ali amalgamados, amamentados e acalentados quando este romance se construía nas mãos e no coração de Victor Hugo. Aproveite e visite também os seus esgotos … “o esgoto é a consciência da cidade. Tudo converge para ali e nele se confronta”.[15]  Você já refletiu sobre o esgoto? Victor Hugo ousou. Ousemos refletir sobre suas considerações: ” O esgoto é um cínico. Ele diz tudo. Essa sinceridade da imundície agrada-nos e nos repousa a alma. Quando passamos o tempo sofrendo na terra o espetáculo da pose que adotam a razão de Estado, o juramento, a sabedoria política, a justiça humana, a probidade profissional, a austeridade da situação, as togas incorruptíveis, consola-nos entrar num esgoto para ver o lodo correspondente”.[16]   Arme-se. Sugiro, armar para trilhar Os Miseráveis carece de bula para que não nos percamos ao incorrermos no lugar comum das interpretações do verbo ou daquelas que nos sugerem os dicionários. Armar para embrenhar pelos Miseráveis significa, exatamente, desarmar-se. Desvestir-se de seus conceitos pré-concebidos, de suas crenças, de seus valores, de suas intenções políticas, de seus votos religiosos e das tantas missas encomendadas para a remissão do passado. Desnudo e desarmado entregue-se e, boa sorte, comece. Ao terminar, ao sair da obra, desvestido, verá que muitas coisas  já não lhe servirão, outras porém lhe calçarão muito mais confortavelmente, e outras lhe causarão profunda estranheza: por que leva nos alforjes tamanha monstruosidade ou tanta insignificância?

Lamentavelmente, após quase um século e meio, o prefácio de Victor Hugo para esta obra denuncia que muitos projetos desde lá ainda não deixaram de ser tão somente intenções, se tanto. Atual e visceralmente instigante. Necessário aos que, apesar das seduções contemporâneas, insistem  em não se acovardar perante a vida, o povo, a Pátria.  Triste prefácio  que, lamentavelmente, perdura absolutamente inalterado aos olhos de quem ousa ver e aos corações de tantos povos, ainda Miseráveis. Vejamo-lo: Enquanto, por efeito de leis e costumes, houver proscrição social, forçando a existência, em plena civilização, de verdadeiros infernos, e desvirtuando, por humana fatalidade, um destino por natureza divino; enquanto os três problemas do século – a degradação do homem pelo proletariado, a prostituição da mulher pela fome, e a atrofia da criança pela ignorância – não forem resolvidos; enquanto houver lugares onde seja possível a asfixia social; em outras palavras, e de um ponto de vista mais amplo ainda, enquanto sobre a terra houver ignorância e miséria, livros como este não serão inúteis. Hauteville-House,  1862.”[17]

Esta obra é constituída a partir de cinco partes distintas, das quais o título realça a força dos seus personagens. Primeira parte: Fantine; segunda: Cosette; terceira: Marius; quarta: O idílio da rua Plumet e a Epopéia da rua Saint-Denis e, a quinta parte: Jean Valjean. Cada parte, exceto a quarta, que é constituída de 15 livros, é composta de oito livros cada. Cada um desses livros aprofunda outros personagens, contextualiza suas inter-relações e constrói o perfil psicológico de cada personagem e da obra. A trama, o “modus” como vão se emaranhando as relações ou de como vão se desenrolando, compõe, com a excepcional cultura e capacidade de bem escrever do autor , além da riqueza de detalhes e profundo conteúdo histórico, o acabamento de Os Miseráveis.

É mister ainda realçar a configuração desta edição. Primorosa. Dois volumes bonitos, bem acabados, digna  de emoldurar tamanha obra. Além disso, contém 816 notas, preciosíssimas para nortear o leitor mais curioso e, muitas vezes, contextualizá-lo.

Nas páginas 767 e 768, o leitor encontrará ainda, para seu deleite, a cronologia de Os Miseráveis.

 Somente após olharmos para a miséria de nossas almas, com ou sem os nossos medos, poderemos dar os primeiros passos para a construção de um mundo melhor, menos miserável. Depende de cada um e de todos nós.



[1] p. 652, v. II

[2] p. 653, v. II

[3] p. 654, v. II

[4] p. 658, v. II

[5] p. 462, v.I

[6] p. 463, v.I

[7] p. 465, v.I

[8] p. 235, v. II

[9] p. 285, v. II

[10] p. 362, v. II

[11] p. 421, v. II

[12] p. 545, v. II

[13] p. 582, v. II

[14] p. 587, v. II

[15] p. 603, v. II

[16] p. 604, v. II

[17] p. 20, v.I

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Estradas e Caminhos

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foto Gilberto Rodrigues

Agora não importa mais
Se há ou não estradas.
Agora não dá mais prá perguntar
Se há como ou mesmo aonde chegar.
O momento é de precisão
E é preciso ir.
Ser. Fazer acontecer…
                É preciso chegar

Canoeiro

Música de João Ormond e Letra de Gilberto Rodrigues

Gravado durante o verão de 2000/2001, CD “Reduto de Violeiros”.
 
 Fazenda Cachoeira 7.9.2011 048
Numa canoa em rio manso
Eu vou indo a navegar
Só não sei em qual remanso
Nem quando vou aportar
O tamanho desse rio
Eu num sei qual vai ficar
Posso dar numa cachoeira
Ou descer até o mar
 
Resolvi essa viagem
Depois de tanto esperar
Eu podia ficar na margem
Mas sem nunca navegar
Não sou mais dono do meu norte
E não sei onde vou parar
Meu pai disse seja forte
Destino num é prá se traçar
 
O rio vai deslizando
Pelos leitos dessa vida
Eu na vida vou caminhando
Com minha alma assim perdida
Como as águas desse rio
Vou seguindo nessa lida
Querendo que lá na proa
O coração me dê guarida
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Cavaleiros da Saudade

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foto Gilberto Rodrigues
 
 
“A todos os companheiros de cavalgada.
Os que já se foram e os que estão aprendendo a montar…”
 
Pelo menos
uma vez a cada ano
se reúnem em uma fazenda
muitos caipiras urbanos
prá realizarem uma cavalgada
 
Todo Mundo
que ali tá reunido
teve o avô ou tem o pai
que já tocou uma boiada
dia inteiro numa estrada
 
“ … mas hoje em dia
tudo é muito diferente
com o progresso nossa gente
nem sequer faz uma idéia …”  [1]
 
Da cavalgada
virou hino essa canção
que o tempo inteiro é cantada
com saudade e emoção
prá relembrar a nossa história
 
De madrugada
com violas enfeitadas
cantadores e violeiros
já despertam os cavaleiros
prá selarem a manada
 
Aquela lida
de tamanho entusiasmo
vai apagando de repente
tudo que era marasmo
dando vida a essa gente
 
Até parece
que a vida da cidade
se esvaiu que nem poeira
nos cascos desses cavalos
prá todo mundo ser feliz
 
Estrada afora
os cavaleiros da saudade
campeando a sua história
desordenam todas as ordens
e trazem para o futuro o seu passado
 
Cada parada
que faz essa peonada
ao longo do caminho
tem viola e cantoria
cantando modas e toadas
 
Tocando em frente
o ponteiro da estrada
já não leva mais berrante
e nem medo ele tem mais
de um estouro de boiada
 
A tardezinha
noutra fazenda é a pousada
os cavaleiros e os cavalos
são ali já esperados
prá descansarem um tiquim
O fogão de lenha
tem comida com fartura
e enquanto num chega a hora
é servida com torresmo
uma pinga das mais puras
 
Cavalgando um dia
da Fazenda Boa Vista
lá prá Fazenda do Tanque
passamo a noite em claro
extasiados com a viola
 
Tuca
violeiro dos prendado
despertou todo o sertão
com ponteios enraizados
no coração dos cavaleiros
 
De madrugada
outra vez estrada afora
cavalgando a saudade
daquele tempo tão distante
mas que na alma ainda persiste
 
Um dia acaba
também mais uma cavalgada
como acabou essa vida
só deixando em seus rastros
um rio grande de saudade
 
Um rio cheio
de pesar e de tristeza
e aquela vida com certeza
só vai de novo ser vivida
quando houver outra aventura
 
Cavaleiros da saudade
vão contando pros seus filhos
galopando história afora
como era que viviam
aqueles homens do sertão.
 

[1]  Da moda “ Mágoa de Boiadeiro “ de Nonô Basílio e Índio Vago.

Da Flôr do Ipê

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foto Gilberto RodriguesComo quem que cochilava

Recostado num Ipê desnudo

O Curupira matutava

Na maldade que há no mundo

 Fazia tempo e num atinava

Num modo de proteger

Dos homens que ali chegavam

Aqueles belos pés de Ipê

 

 Na passagem de estação

Ficava o Ipê desprotegido

Sem folhas até dava a impressão

De que havia mesmo era morrido

 

 Num pulo salta o Curupira

Saltitante de alegria

E de sua alma tão caipira

Vem a resposta que carecia

 

 Se o homem corta o pé de Ipê

Porque parece que ele morreu

Já sabe o Deus das matas o que fazer

Vejam  só o que se sucedeu

 

 Sai o Curupira caminhando

Com seus pés virados mata fora

 E com cada árvore vai assuntando

Sobre os segredos da sua flora 

 Acharam logo a solução

Pra todo Ipê poder salvar

Quando chegasse a estação

E ele tivesse que se desfolhar

 

 O Deus das matas se apressou na decisão

De cobrir o pé de Ipê com flores das mais belas

Tão logo sua última folha fosse ao chão

Floresceria o Ipê lindas flores amarelas

 

 Então todo mundo admirava

O Ipê que ficou de rara beleza

O homem então não mais lhe cortava

E até fez dele símbolo da natureza

 

 Quem sabe tudo desse acontecido

É o Caipora, dos animais o protetor

Que se alembra ainda desse ocorrido

E dia desses tudo isso me contou.

 

NOTA DE PESAR: Com grande Tristeza registro aqui, contrariando o sonho do Curupira, que em agosto de 1998, em Queluzito, MG, ( ver poema Minha Terra, em PERFIL) foi cortado um pé de Ipê secular, enquanto por alí passávamos em cavalgada, coberto de flores amarelas, apenas para que não fizesse sombra num telhado e para aproveitar o terreno para aumentar uma construção.

O homem compreende cada vez menos a si mesmo e projeta na natureza a sua raiva.

O Curupira está sendo vencido pela estupidez humana.

Corpo Chão

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foto Gilberto Rodrigues

 Meu corpo está vermelho.
É vermelho
Meu coração. Meu peito é vermelho
Do pó, do chão de onde eu vim.
 
 
Era chão de mato,
De fato
Era corpo livre
No meio do pasto.
 
Era terra, era vento,
Era o corpo. O corpo era a terra.
E corpo e terra eram sementes,
Geradas nas tardes de sol, vermelhas de amor.
E na terra do sol eu sou.
 
Meus pés têm a cor da noite.
Os meus olhos têm a cor do sangue,
Sinto cheiro de asfalto,
Saudades do mato,
Saudades do chão.