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A POSSIBILIDADE DA CONDENAÇÃO AFIANÇA A LIBERDADE

foto Gilberto Rodrigues

  A OBRA

DOSTOIÉVSKI, Fiódor.  Crime e Castigo
 
568 p. – Coleção Leste
Tradução: Paulo Bezerra
[Traduzido diretamente do Original Russo, Obras Completas, tomo VI, Ed. Naúka, Moscou-Leningrado, 1978.]
São Paulo – Editora 34, 2001.

O crime, para não se perpetuar, para inibir o desenvolvimento de um processo destrutivo, ou de auto destruição, reclama incondicionalmente um castigo. Princípio básico, evolutivo, desenvolvido para  garantir a preservação e a perpetuação da espécie. Encontrar uma pessoa que tenha consciência de que cometeu um crime não é uma obra do acaso, nem mérito do perseguidor, mas uma necessidade vital do criminoso.

          A transgressão cometida enraíza-se na alma como erva daninha, das mais perniciosas. A consciência, sabendo-se culpada, saboreando a culpa  e responsabilizando-se pela transgressão, não retorna à paz se um castigo não lhe for imputado. E não pode ser qualquer castigo. Ele deverá vir, obrigatoriamente, da parte de quem foi lesado ou de quem garantirá que tornará público para aqueles que souberam da lesão, para que eles, sabendo agora da punição, estabeleçam a relação com o castigo e reafirmem a certeza de que, mais dia, menos dia, todos farão seus acertos de contas, pagarão suas dívidas e perceberão seus créditos. Não é por curiosidade, simplesmente, que o criminoso sempre retorna ao local do crime. Ele retorna para ser identificado e garantir o reconhecimento, para, posteriormente, ser detido, julgado e condenado. Para certificar-se de que cuidou de tudo para ser castigado. A fuga somente será empreendida e bem sucedida se houver a certeza de que pistas efetivas foram deixadas para que os responsáveis pela feitura da justiça a percebam e passem, a partir daí, a dar cabo da apreensão do criminoso e à aplicação da pena correspondente ao crime cometido. Não basta somente o castigo. É vital que ele venha proporcional e diretamente correspondente ao crime cometido, de fato, ou  àquele que fora “julgado” como tal.

          O que se apossa primeiramente da alma humana? Uma necessidade interna, primitiva, do crime ou uma necessidade interna, primitiva, do castigo? Podemos dizer que, para o crime, seja  qual for, não há necessidade correspondente. A não ser enquanto exceção, em casos onde haja, por parte do criminoso, o padecimento de alguma patologia de maior gravidade. Porém, para o castigo é diferente. Reclamamos punição para várias coisas que fazemos e as consideramos erradas, ou para aquelas que omitimos e a omissão nos parece errada, independente de terem ou não ocorrido de fato. A não compreensão dessa necessidade e de como supri-la nos instiga a uma transgressão que, sendo efetivada e tornada pública, desencadeará a punição correspondente. Primeiro a pessoa sente que precisa ser punida por um crime que tenha cometido contra si mesma, de forma física ou psicológica, consciente ou não. Para garantir que a punição, que o castigo seja levada a termo, cuida para que essa transgressão seja externada, justificando e garantindo, assim, a devida punição, o correspondente castigo. O castigo pelo crime amedronta muito menos o criminoso […] porque ele mesmo o reclama (moralmente), escreveu Dostoiévisk a M. Kátkov, expondo a idéia do romance.[1]

Raskólnikov, personagem principal da obra e que empresta sua consciência para o autor estabelecer o palco para o seu drama, não padecia de nenhuma patologia e nem cometera um crime para garantir a punição correspondente a uma culpa que vivenciava interiormente. Vê só: eu queria tornar-me um Napoleão e por isso matei … Então, agora dá para entender? Vejam, essa era a razão para o crime de Raskolnikóv!

          Dostoiévski, numa crítica severa ao privilégio da burguesia, e à forma discriminatória como os povos julgavam seus pares, nos coloca, ao longo da sua narrativa, questionamentos profundos e atuais: Por que um crime não é igual? Por que o diferencia, o assassino, ou o morto? Por que, dependendo de quem mata, há um tratamento diferenciado? Ou, dependendo de quem foi assassinado há, também, tratamento diferenciado? Favorecendo ou punindo uma das partes? Empresta ao seu personagem principal a capacidade de transgredir o quase impossível de transgressão: um crime para comprovar uma tese. É em torno dessa premissa que Dostoiévski faz de Crime e Castigo um clássico que conquistou seu espaço nas grandes bibliotecas mundo afora e no coração de todos nós, leitores com paixão pelo conhecimento da alma humana.

          Raskolnikóv explica assim o que aconteceu: O negócio foi o seguinte: certa vez me fiz uma pergunta: o que aconteceria se, por exemplo, no meu lugar estivesse Napoleão e, para começar a  carreira, ele não tivesse nem Toulon, nem o Egito, nem a travessia de Mont Blanc, mas em vez dessas coisas bonitas e monumentais houvesse pura e simplesmente alguma velha ridícula, usurária, que ainda por cima ele precisasse matar para lhe surrupiar o dinheiro do cofre (para a sua carreira, está entendendo)? Pois bem, será que ele se atreveria a isso se não tivesse outra saída? Não ficaria enojado por ver que isso não tinha absolutamente nada de monumental e… era censurável? Pois bem, eu te digo que sofri durante um tempo terrivelmente longo com essa  “questão”, … 

Nesse mesmo diálogo, com Sônia, um pouco mais adiante ele define quem matara:

_ Acontece, Sônia, que matei apenas um piolho, inútil, nojento, nocivo.

_  A pessoa é um piolho!?

_ Ora, eu também sei que não é um piolho, – respondeu ele, fitando-a de maneira estranha _ [ …][2]

_ Naquela ocasião, Sônia – continuou ele entusiasticamente -, eu adivinhei que o poder só se deixa agarrar por aquele que ousa inclinar-se e tomá-lo. Aqui só há uma coisa, uma só: basta apenas ousar! Então, pela primeira  vez na vida, me vinha à imaginação uma idéia que antes de mim ninguém jamais havia imaginado! Ninguém! Eis que me pareceu claro, como o sol: como é que ninguém até então, ao passar ao lado de todo esse absurdo, havia ousado e não ousava pura e simplesmente agarrar tudo pelo rabo e arremessar para o diabo! Eu… quis ousar e matei… eu só quis ousar, Sônia, eis toda a causa!

_ Ora, cale-se, cale-se! – exclamou Sônia erguendo os braços. – o senhor se afastou de Deus e Deus o golpeou, o entregou ao diabo!…

_ Aliás, Sônia, quando eu estava deitado no escuro e tudo isso se me afigurava, foi o diabo que me perturbou? Foi?

_ Cale-se! Não ria, blasfemador […]

          O crime é sempre crime ou depende de quem o comete? A justiça é sempre justiça ou depende de quem lhe fica à mercê?

          Raskólnikov caminha para o apartamento de Aliena Ivánovna com a idéia fixa de matá-la. Napoleão também marchava cavalgando à frente de seu exército. Ambos marchavam para matar. Ambos mataram. Um seria herói, o outro criminoso. O que os diferenciava?

          Raskólnikov levava sob o sobretudo o machado amarrado, caprichosamente disfarçado, mas não a ponto de fazê-lo esquecer de suas intenções. Entrou amigavelmente na casa de Aliena. A velha dera-lhe as costas buscando a luz da janela para ver melhor o objeto, um penhor, que Raskolnikov trouxera e deixava-lhe a mão. O golpe acertara em plenas têmporas, […] Ela deu um grito, mas muito fraco, e súbito arriou inteira no chão.[3]  Ele então buscou as chaves da cômoda do quarto e tentou abri-la. Pairou-lhe uma dúvida quanto se matara mesmo aquela velha e voltou então à sala para certificar-se. Via claramente que o crânio estava esfacelado e até levemente deslocado.[4]

          Voltou para ver se conseguiria abrir a cômoda do quarto, embora não tivesse nenhuma obsessão para roubar alguma coisa. Lembremo-nos  de que o propósito de seu ato tinha, consideremos desta forma, até um caráter filosófico. Raskolnikov queria confirmar uma tese. Porém, como sempre nos ocorre quando estamos transgredindo os princípios da nossa consciência ela, como que para preservar nossas vidas, reserva-nos peças surpreendentes que não foram incluídas em nossos planos. Que não foram previstas. Raskolnikov pensara em apenas um crime. O que seria suficiente para a sua tese. Apenas uma morte lhe bastaria. As circunstâncias ofertaram-lhe duas. Poderia ter optado, porém, … Súbito soaram passos de alguém no cômodo onde estava a velha […] De repente ouviu-se nitidamente um leve grito […] subitamente deu um salto, agarrou o machado e saiu do quarto correndo. No meio do cômodo estava Lisavieta em pé …[5] Lisavieta era a irmã de Aliena Ivánovna que acabara de chegar e, inteiramente branca, olhava para o corpo da irmã derramado e semicoagulado sobre a enorme e vermelha poça de sangue. O golpe foi direto no crânio, de lâmina, e de uma só vez abriu toda a parte superior da testa chegando quase às têmporas. E ela desabou.[6]

          O crime, Dostoiévski nos conta  na primeira parte desta obra. Nas restantes quatrocentas e cinqüenta e oito páginas, divididas em mais  seis partes, o autor desenovela dramas existenciais e psicológicos sobre os seus personagens. Personagens todos de nós mesmos.

          A trama consiste, densa  e profundamente alinhavada, na tentativa do assassino de entregar-se para reparar o seu crime, para ser devida e corretamente punido e na resistência, na total incapacidade de ser acreditado pelas pessoas a quem derramava pistas inquestionáveis sobre o crime que cometera. Dramaticidade permeia toda a obra. A ânsia e a necessidade da confissão submergia perante o medo de ver-se preso. Por outro lado, não suportava a certeza de que tinha que pagar a dívida contraída que via protelada a cada dia, a cada tentativa.

          Dostoiévski leva-nos então a partir daí, juntamente com Raskolnikov ao final da obra. Prende-nos. Como ao nosso condenado, joga-nos nas galés, raspa-nos a cabeça, veste-nos uniformes de retalhos para reconduzir-nos depois a um momento de clímax. Ao momento de descobrirmos, enfurecidos ou piedosos, que, se não soubermos cultivar a liberdade que é própria, e propriedade de nós, a desfrutaremos  somente após termos conseguido que a nossa sociedade nos julgue, condene e sentencie-nos a pagar por nossos crimes nas prisões desumanas. Então, lá, presos com Raskolnikov, experimentamos a liberdade. Em plenitude. Mas ouça-me, como se na quietude de uma noite bela, de lua cheia, e na calma peculiar de momentos assim reflita: será que precisamos ser agrilhoados para darmos conta da possibilidade de sermos livres? Não haverá um modo mais inteligente de descobrirmos os caminhos da liberdade? Será que foram mesmo assim traçados os caminhos de cada um de nós pelas nossas estradas vida afora?

          Esta obra é de leitura obrigatória para todos que gostam de um bom romance e apreciam partilhar do inconsciente coletivo de admiráveis escritores. Para todos  que querem conhecer um pouco mais os meandros da alma humana em seu percurso pelos caminhos do seu destino sob o jugo da solidão, da pobreza e da culpa. Porém, aqueles que optaram por exercer uma atividade profissional que constela a área das Ciências Jurídicas devem, se ainda não o fizeram, esmiuçar Crime e CastigoA compreensão, de uma fração que seja, da alma de quem entra pelos nossos tribunais com as mãos enlaçadas por algemas e conduzidos pelos homens que representam a lei e a ordem, fará de cada um de nós, estudantes ou já profissionais do Direito, pessoas mais humanizadas e conseqüentemente, mais humanas. Quem sabe uma leitura como  essa nos aproxime sobremaneira daqueles  que estarão à nossa frente nos tribunais, na condição de réus confessos ou condenados indefesos, e nos possibilite ser mais justos, menos intransigentes e, quiçá, menos onipotentes – a justiça será, então, feita com mais sabedoria e o próximo será visto como um próximo mais digno do nosso amor e da nossa compaixão. Se os olharmos com atenção de fato, humana, veremos naqueles olhos talvez nada mais que anjos cruéis que quiseram ousar, compreender a vida, amarem a si próprios. Ou serão vítimas da falta de compreensão de nós outros, “bem-vividos”? Os veredictos então, se de fato sustentados no máximo que nos for possível da compreensão sobre o ser humano, darão mais brilho e sentido aos castigos estabelecidos e nos farão a cada dia menos criminosos. Menos Miseráveis.



[1]  Nota 39, p. 428

[2] p.425

[3] p.91

[4]  p.92

[5]  p.93

[6]  p.94

One Response to “A POSSIBILIDADE DA CONDENAÇÃO AFIANÇA A LIBERDADE”

By Marcelo - 13 novembro 2020 Responder

Obra enfestada de frestas- enfrestada. Sorrateira e punjante. Inevitável à visitação humana. Me recordei da travessia do Rubicão (a metáfora do ato analítico em Lacan), do “sapere aude” de Kant (ouse saber) e também daquele que salta entre túmulos em Ítalo Calvino. A lei da gravidade nos é inevitável, talvez como qualquer lei. Por Newton ou pela interpelação de Althusser no “Ei, você aí?”, todos respondemos a um chamado, por uma culpa que nos habita, se achamos merecedores de punição. O titulo dessa resenha, seria suficiente a quem leu a obra, pois contrai ao máximo um dos grandes dramas de Dostoiévski, e de todos nós (piolhos?). A obra de um desejo, de uma morte, de um assassinato, de uma assinatura; já disse em outro momento: de uma “assassinatura”. Ela precisa ocorrer. A questão é onde, como, em que momento, com bem indaga o autor da resenha. Sem essa preocupação continuamos investindo mais no crime e no castigo do que no entendimento da alma humana.

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