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OS ENCANTOS DO PÁSSARO AZUL

 
 
Resenha

 

foto Gilberto Rodrigues

A OBRA

FRANCE, Anatole. O Crime de Sylvestre Bonnard

239 p. – Coleção dos Prêmios Nobel de Literatura [ Prêmio de 1921]

Tradução: Álvaro Moreyra

Estudo Introdutório: Jacques Chastenet

Editora Delta – Rio de Janeiro, RJ – 1963

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Et nunc dimittis servum tuum, Domine![1] (E agora manda embora o teu servo, Senhor.) Assim, em latim, com esta frase, Anatole France termina esta obra. Assim, como se terminasse uma derradeira oração. Pronto, agora me manda embora, deixa-me ir.

Após uma história de dedicação, desencontros, amores perdidos e amores não vividos, narrada na primeira pessoa, Sylvestre Bonnard deixa-nos, no silêncio, a dúvida: quantos crimes cometera? O título da obra é posto no singular. Porém, por razões e motivações que não comportam censura, Sylvestre Bonnard cometera dois crimes. Importantes. Graves. Confessos.

Vejamos como fala destes dois crimes:

 Certa vez, sendo convidado pelo Sr. Paul de Gabry, sobrinho e herdeiro do Sr. Honoré de Gabry, par de França em 1842 e descendente de antiga família de magistrados, para inventariar a biblioteca que ficara como herança para o Sr. de Gabry, uma rica biblioteca com muitos e preciosos manuscritos, alguns datados de século XIII, relatara a este Sr. sobre o que lhe ocorrera. Após esta confidência ao Senhor de Gabry e uma longa discussão sobre o acontecido, reconhece: Pouco a pouco, porém, ouvindo os esclarecimentos tão sensatos do Senhor de Gabry, terminei por aceitar que seria condenado, não pelas minhas intenções, que eram puras, mas pela ação que era criminosa.[2] Isto se deu em 28 de dezembro de 1876. Sylvestre Bonnard não fora condenado por uma dessas ações do destino, se é que ele existe. Crime cometido, reconhecido, confesso. O Senhor de Gabry, fundamentando-se no artigo 354 do código penal da França daquela época, deixou-o sem qualquer expectativa de livrar-se de uma condenação e mostrou-lhe ainda: Veja o código penal, 21 e 28… 21: o tempo de prisão será, pelo menos, de cinco anos… 28: _ A condenação importa na degradação física.[3] Mas quem poderia denunciá-lo fugiu, também, por um crime que cometera. Neste caso, um crime idêntico. Semelhanças às vezes são mais fortes que coincidências. Não havia queixoso. Não houve denúncia. Sem crime, então? O crime fora cometido, apesar das intenções que eram puras. Mas não será julgado.

Quase um ano depois, 20 de setembro de 1877, como se desabafando para Aníbal, seu novo companheiro, que substituíra Hamílcar, na casa dos livros, sua biblioteca, Sylvestre Bonnard, referindo-se agora a uma outra situação, novamente confessa: E foi então que conheci o crime! As tentações vinham-me durante a noite; ao amanhecer tomavam conta de mim… Consumado o crime, de novo me sentava a trabalhar…[4]

A qual dos dois crimes, distintos em qualificação, época e objeto, se referia Anatole France ao nomear, no singular, sua obra?[5] Terá, intencionalmente, deixado para o seu leitor a árdua tarefa de classificar qual teria sido o crime cometido pelo seu personagem? Terá desejado levar-nos à reflexão sobre a qualidade deste tipo de crime e de como deveríamos nos comportar ao julgarmos o Sr. Bonnard? Ou não intencionou nada disso? Mas o Senhor de Gabry, preocupado com o destino do amigo e os rumos que poderia tomar a sua sorte, se um processo fosse aberto, alerta-o, preocupado, caracterizando a gravidade de um dos crimes: Pelo amor de Deus e pelo seu interesse, não faça nada! Seu caso é péssimo; fique quieto para não torná-lo pior. Prometa-me apenas concordar com tudo o que eu fizer.[6] E o Sr. Bonnard, impassível porém convicto, perseverava: tinha medo, mas não tinha remorsos nem arrependimento.[7]

O Sr. Sylvestre Bonnard, à época dos crimes, conforme minha leitura, ou do crime, conforme sugere Anatole France, estava com setenta anos de idade. Quanto a sua profissão, ele mesmo nos conta: nada há para mim no mundo, além de palavras, tanto me tornei filólogo. Cada qual faz como pode o sonho da vida. O meu é feito na biblioteca; e, quando chegar a hora de partir do mundo, Deus me encontrará na velha escada, diante das prateleiras cheias de livros.[8]

Desconheço alguém que nutrira tanto afeto, cuidado e dedicação ao livro. Sua vida era constelada pelo seu manuseio, busca incessante de exemplares valiosos e arroubos de prazer quando do achamento de algum que rareava longe de sua casa de livros.

Cada um daqueles livros, daqueles alfarrábios, ficava totalmente marcado, como se fizesse uma identificação personalizada, pelo polegar, já curioso por força de hábito, daquele homem estudioso como se perscrutasse segredos já desde o seu manuseio. O livro não lhe bastava somente enquanto objeto de leitura, mas além disso, de descobrimento de si mesmo, de angústias importantes que lhe traziam páginas misteriosas e de encontros de segredos e explicações sobre a vida, o mundo e o universo.

Sylvestre Bonnard era um homem nobre, com intenções nobres e ações nobres. Havia nobreza até nos seus crimes. Porém, apesar de tanto, era um criminoso. Viveu uma vida simples, entre poucos personagens, além daqueles que lhe apresentavam os seus alfarrábios. Por manuscritos, garimpava notícias de seus paradeiros nos seus catálogos, percorria léguas e léguas sem medir esforços. Na simplicidade de suas buscas, valores profundos, por simples mesmos, obrigam-nos a reflexões profundas.

 Esta obra é dividida em duas partes. Na primeira Anatole France nos conta a saga de Sylvestre Bonnard para conseguir A Legenda Dourada, de Jacques de Voragine; tradução francesa do século XIV, pelo clérigo Jean Tontmouille.[9] Tomou conhecimento dessa obra através de um catálogo de manuscritos, redigido em 1824, pelo Sr. Tompson, bibliotecário de Sir Thomas Rualeigh. Em sua casa conviviam, entre afagos e ronrons, seu amigo Hamílcar e Thèrése, a governanta.

Num desses dias, que a vida deixa como se tudo fosse absolutamente comum, o Sr. Bonnard é incomodamente interrompido das buscas em seu catálogo, por um tal Sr. Coccoz. Um consultor de livraria. Esta visita é importante, pois além de descrever um belo diálogo em torno das mesmices do dia-a-dia, sensibiliza o Sr. Bonnard para a esposa do Sr. Coccoz, que encontrava-se grávida e morava, provisoriamente, no sótão do seu casario. Compadecido da situação daquela jovem, o Sr. Bonnard encarrega Thèrése, sua governanta de, naquela noite, chamar o amigo servente e pedir-lhe para apanhar, no depósito de lenha, uns bons cavacos de lenha para aquecer o domicílio dos Coccoz. E, principalmente, que ela escolha entre as achas, a maior, uma autêntica acha de Natal. Tempos depois, a Sra. Coccoz enviuva-se e em seguida casa-se com o Príncipe Trepof.  Esta obra já torna-se merecedora da partilha do nosso tempo, por mais precioso que este possa ser, somente pelo prazer de vermos como a então Princesa Trepof presenteia Sylvestre Bonnard com a sua Legenda Dourada. Vejamo-lo ao abrir o presente. É ele quem nos relata:

É um embrulho grande, mas não muito pesado. Tiro, na biblioteca, as fitas, o papel que o envolve. E encontro… quê? Uma acha de lenha, uma grande acha de lenha, uma verdadeira acha de Natal tão leve porém, que acredito esteja ôca. Com efeito, descubro que é composta  de dois pedaços, unidos por uma espécie de fechadura, fácil de abrir. Abro-a e sou coberto de violetas. Caem na mesa, nos meus joelhos, no tapete, entram-me pelo colete, pelas mangas. Fico todo perfumado.

[…] Tirei as violetas da acha de lenha e elas espalharam-se pela mesa com a sarça que as acompanhava, toda aromada também. Há ainda qualquer coisa na acha… um livro…um manuscrito. É … não posso acreditar e não posso duvidar!… É A Legenda Dourada. É o manuscrito de Clérigo Jean Toutmouillé.[10]

 Permeiam ainda esta primeira parte da obra, um alfarrabista, o príncipe, colecionador de caixas de fósforos e atual marido da ex-Sra. Coccoz, o tio Victor, um capitão em Waterloo e uma boneca. Uma boneca cobiçada por Sylvestre Bonnard. Fascinava-o esta boneca quando tinha oito anos de idade. Sua sensibilidade conduzia-o para o belo independente de atrelar ou não seus modos pelos costumes e pelos comportamentos que os padrões discriminavam e catalogavam como usuais, considerando, de forma discriminatória e preconceituosa, o que seria mais ou menos adequado a cada sexo. Algumas almas mais nobres vagueiam por sobre esses determinismos. E ele queria esta boneca. Os hércules têm fraquezas,[11] consolava-se. Mas, caro Sr. Bonnard, por isso mesmo, por não temer as fraquezas, Hércules. Vejamos como nos conta este episódio, marcante, provavelmente, de sua vida:

Revejo com  singular precisão uma boneca que, nos meus oito anos, estava exposta numa loja feia da rua de Seine. Como aconteceu que essa boneca me fascinasse, não sei. […] Meus soldados, meus tambores não me interessavam mais. A boneca era tudo para mim[12]. Um dia, passeando com o seu tio Victor pela rua onde ficava a loja que tinha aquela boneca, com a saia florida, as bochechas vermelhas e as pernas esticadas resolveu tentar que o tio lhe fizesse dela um presente:

_ Tio, o senhor compra essa boneca para mim?

_ Comprar uma boneca para um homem! Queres perder a honra?[13] E é essa bruxa que desejas? Pede-me um sabre, pede-me um fuzil, e eu os pagarei com a última moeda do meu soldo de reformado. Mas, comprar uma boneca, raios te partam! Desmoralizar-te! Nunca! nunca! Se te visse brincar com uma rameira ataviada como essa, senhor filha da minha irmã, não te reconheceria mais como filho da minha irmã.[…]

Tomei ali uma resolução. Jurei a mim  mesmo não me desonrar; desisti, firme e para sempre, da boneca de bochechas vermelhas. Conheci, nesse dia, a austera doçura do sacrifício.[14] 

O que ficara plantado, profundamente, ali, na alma daquela criança?

Ainda naqueles devaneios, por onde passeava em busca de reminiscências, deparou-se, além da boneca, com Clémentine. Aquela filha de um amigo de seu pai, a avó de Jeanne Alexandre e a única mulher que amara em toda a sua vida. Clémentine foi-se, casou-se, morreu. Compreendi que o que tinha amado não era mais que uma sombra. Mas a lembrança desse amor ficou sendo o encanto da minha vida.[15] O encanto agora era Jeanne Alexandre. Qualquer dificuldade que pudesse se interpor entre os dois seria, sem dúvidas, interpretada como causadora de desencanto. Houve interposições. Houve um crime. Que crime poderia ter cometido Sylvestre Bonnard? E afinal, o que é um crime?

 II Parte

 Não saberia dizer por que nem por quanto tempo os meus olhos estavam fixos, sobre o velho in-fólio, quando foram arregalados por um espetáculo de tal maneira espantoso, que um homem como eu, sem fé no sobrenatural, assim mesmo tinha que ficar estupefato.

Vi, de repente, vinda não sei de onde, uma mulher sentada no dorso do livro, um joelho dobrado e uma perna pendente, …Era tão pequena que seus pé balançando não chegava até à mesa sobre a qual se estendia em dobras a cauda do vestido. Mas o rosto e as formas eram de mulher adulta.[16]

Três dias depois, ao retornar de uma viagem:

Dirigi-me ao salão maior sem ver ninguém. O castanheiro, que ali estendia suas grandes folhas, deu-me a impressão de um amigo. Mas o que vi em seguida, sobre o consolo, tal surpresa me causou que reajustei com as duas mãos os óculos no nariz e me apalpei para ter a noção, ao menos superficial, da minha própria realidade. Mais de vinte idéias vieram-me num segundo ao espírito, e a mais teimosa era a  de que eu tinha ficado doido. Parecia-me impossível que o que eu estava vendo existisse, e, ao mesmo tempo, era impossível que eu não o enxergasse como uma coisa existente.

[…]

Rendi-me, afinal. Não duvidei mais, diante de mim, estava a fada, a fada do meu sonho na biblioteca

A voz da Sra. de Gabry chegou de súbito aos meus ouvidos:

_Está examinando a sua a sua fada, Sr. Bonnard? Acha-a parecida?[17]

Ah! Como esse mundo é mesmo pequeno. E redondo. Nos romances assim como na vida! Você já sabe quem foi a artista que materializou a visão do Sr. Bonnard, deixando-o atônito? A neta de Clémentine, Jeanne Alexandre.

Jeanne Alexandre perdera, como já sabemos, a mãe, e ficou só, sem alguém que lhe cuidasse.  Fez-se seu tutor um tal Sr. Mouche que a internara sob a responsabilidade de Mademoiselle Préfère. Virgínie Préfère. Quando Sylvestre Bonnard a viu, fez dela a seguinte descrição: uma criatura curiosa. Caminhava sem levantar  as pernas e falava sem mexer os lábios.[18] Mademoiselle Préfère dirigia o colégio da Rua Demours que recebia as filhas das melhores famílias, dava lucro e era muito conceituado.[19]

Sylvestre Bonnard, após uma visita ao Sr. Mouche, tutor da Srta. Jeanne, conseguiu uma autorização para visitá-la na primeira quinta-feira de cada mês. A impressão do Sr. Mouche sobre a Srta. Jeanne: ela é indomável.

Isto tudo deu-se porque, a partir do momento em que ficou sabendo que Clémentine, seu único e grande amor,  deixara uma neta, e que esta poderia ser sua, resolveu investir o que lhe restava de sua vida, para cuidar de “sua” neta, tornando, a partir de então, sua grande, senão única, razão para viver. Determinado, como se fizesse desta resolução sua sina, daquelas que se obriga ao cumprimento, obcecado, não aceitaria qualquer senão, ou não, ou dificuldade, para que tal sina se cumprisse. Sylvestre Bonnard trocaria sua alma, se necessário, pela possibilidade de cuidar dessa jovem que vinha, em sua vida, como se a lhe trazer uma nova e profunda razão para viver: a relembrança de um amor não vivido. Como relembrar do que não houve? Relembramos dos sonhos, lembranças perfeitas. Por isso mesmo perigosas, pois não se parecem com a vida, onde nada pode ser perfeito.

E obstáculos não faltaram para dificultar seu intento: um tutor inescrupuloso e uma diretora insensível e interesseira – que após tentar se casar com o Sr. Bonnard, sem sucesso, afasta drasticamente da Srta. Jeanne. E para suas intenções, boas, até a lei tornara-se empecilho, pois não lhe facultava que seu desejo simplesmente se realizasse.

Superados todos os obstáculos, inclusive do julgamento por um crime cometido, Sylvestre Bonnard consegue levar Jeanne Alexandre para sua casa e casá-la com Henri Gélis, um aluno do terceiro ano da Escola de Arquivística. Tudo parecia prenunciar um final feliz.

O Sr. Bonnard muda-se para Brolles. Minha casa é a última que aparece na rua da aldeia, antes da floresta. É uma casa de fachada pontuda cujo teto de ardósia, batido pelo sol, toma todas as cores. O cata-vento, no meio do telhado, dá-me  mais consideração entre os camponeses do que todos os meus trabalhos de História e de Filologia.[20] Nesta casa era mantido um quarto para quando Jeanne e Henri viessem visitá-lo e nele, um berço para o jovem Sylvestre Bonard. Haviam-no convidado para padrinho e o homenagearam, dando ao filho o seu nome.

Eu lhe contava histórias. O pequeno Sylvestre ouvia-as feliz. Gostava de todas, mas principalmente uma maravilhava a sua alminha: a história do Pássaro Azul. Quando eu terminava, tornava a pedir:

_ Conta, conta!

Eu contava outra vez e sua cabeça pálida, de veias salientes, caía sobre o travesseiro.

A resposta do médico a todas as nossas perguntas era sempre a mesma:

_ Ele não tem nada de extraordinário.

Não… o pequeno Sylvestre não tinha nada de extraordinário. Uma noite do ano passado o pai desceu ao meu quarto:

_ Venha depressa; ele está pior. Aproximei-me do berço. A mãe parara ali, presa por todas as forças da sua alma.

O pequeno Sylvestre volveu lentamente para mim os olhos que se pagavam sob as pálpebras já imóveis, e murmurou:

_ Padrinho, agora tu não precisas me contar histórias.

Não, agora eu não precisava lhe contar histórias!

Pobre Jeanne! Pobre mãe!

Estou velho demais para continuar muito sensível; mas, na verdade, é um mistério doloroso a morte de uma criança.

[…]

Et nunc dimittis servum tuum, Domine![21]

 Caro leitor, se a curiosidade sobre qual é o crime de Sylvestre Bonnard, a que o título da obra se refere, lhe inquieta a alma, tome em seu colo o livro de Anatole France e descubra-o. Será, tenho certeza, um achado prazeroso. Mas, tome em seu colo essa obra por uma outra, e muito mais importante razão: não cometer o crime de não ler essa obra de Anatole France. Use a sua argúcia, perscrute a sua curiosidade e renda-se … é, indubitavelmente, uma grande obra. Divirta-se.

Quero ainda um fio da sua atenção, caro leitor. Confesso-lhe que causou-me surpresa perceber o quanto, em nossos dias, Anatole France é desconhecido. Mesmo no meio daqueles que são afeiçoados e íntimos de grandes obras da literatura universal. Se você é um amante da boa leitura, redescubra-o. Se não é ainda dado a esses amores, leia-o e se encantará.

No campo das letras, as reputações se fazem e desfazem a toda pressa; os mestres que ontem eram os mais venerados, hoje são desprezados. Anatole France padece do nosso desprezo. Poucos o conhecem ou sabem alguma coisa sobre a sua obra, ou leram alguma delas. Apesar de que Anatole France é mais para ser saboreado que para ser lido…

Anatole France nasceu Anatole Thibault a 16 de abril de 1844, em Paris.Seu pai, François-Noël Thibault, oriundo do Anjou, tinha no Cais Malaquias, um mostruário de alfarrabista com a tabuleta “Livraria de França”. ( Daí, sem dúvida, mais que de um impulso de orgulho, o pseudônimo que o filho adotará).

A especialidade da casa é a revenda de obras, caricaturas e manuscritos relativos à Revolução. Ali Anatole tomará gosto pelos velhos papéis e as doutas conversações.

Anatole France aos 12 de outubro de 1924, ao cabo de penosa agonia, solta o derradeiro suspiro.

Sobre a obra reproduzo aqui o que escreveu Jacques Chastenet, da Academia Francesa:

1881: Anatole France vai fazer trinta e sete anos, e sua reputação ainda não ultrapassa os limites de um estreito cenáculo. Mas eis que em abril a publicação  de um novo livro, O Crime de Sylvestre Bonnard, Membro do Instituto ( do qual tinham aparecido capítulos em diversos periódicos) granjeia-lhe de golpe a notoriedade. A Academia Francesa premia a obra.

Mais do que um romance, O Crime é a justaposição de duas longas novelas dispostas em torno de um mesmo personagem central, o erudito Sylvestre Bonnard, velho pela idade, jovem pelo coração, eloqüente, espirituoso e, em suma, delicioso. A dupla historieta é assaz tênue, e não lhe faltam inverosimilhanças. Que importa! A linguagem é constantemente pura, viva, requintada sem preciosismo; as cenas sucedem-se, ora agradáveis, ora enternecedoras, jamais pesadas; os quadros desfilam – cais de Paris, paisagens sicilianas, pitorescos interiores – sempre de uma extrema segurança de toque; comparsas agitam-se, descritos com segurança de mão.

Talvez, com o recuo dos anos, tanta inteligente elegância se mostre um pouco desbotada. Só um pouco. O Crime de Sylvestre Bonnard  é uma incontestável obra-prima, e merece permanecer como regalo para espíritos finos.[22]


[1] p. 230 ( E agora manda embora o teu servo, Senhor.)

[2] p. 211

[3] p. 209

[4] p. 226

[5] Título do original francês: LE CRIME DE SYLVESTRE BONNARD

[6] p.211

[7] p.212

[8] p.117

[9] p.84

[10] p.110

[11] p.77

[12] p.77

[13] Abdicar de uma boneca pela honra. Não seria já, prematuramente, a indução leviana e cultural, daquela criança ao mundo dos crimes mais perversos que o homem pode cometer, pois faz de si mesmo, sem o saber, o que é pior, objeto de seu próprio crime?

[14] p.79

[15] p.117

[16] p. 124

[17] p. 131

[18] p. 158

[19] p.172

[20] p.228

[21] p. 230

[22]  p. 38

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A POSSIBILIDADE DA CONDENAÇÃO AFIANÇA A LIBERDADE

foto Gilberto Rodrigues

  A OBRA

DOSTOIÉVSKI, Fiódor.  Crime e Castigo
 
568 p. – Coleção Leste
Tradução: Paulo Bezerra
[Traduzido diretamente do Original Russo, Obras Completas, tomo VI, Ed. Naúka, Moscou-Leningrado, 1978.]
São Paulo – Editora 34, 2001.

O crime, para não se perpetuar, para inibir o desenvolvimento de um processo destrutivo, ou de auto destruição, reclama incondicionalmente um castigo. Princípio básico, evolutivo, desenvolvido para  garantir a preservação e a perpetuação da espécie. Encontrar uma pessoa que tenha consciência de que cometeu um crime não é uma obra do acaso, nem mérito do perseguidor, mas uma necessidade vital do criminoso.

          A transgressão cometida enraíza-se na alma como erva daninha, das mais perniciosas. A consciência, sabendo-se culpada, saboreando a culpa  e responsabilizando-se pela transgressão, não retorna à paz se um castigo não lhe for imputado. E não pode ser qualquer castigo. Ele deverá vir, obrigatoriamente, da parte de quem foi lesado ou de quem garantirá que tornará público para aqueles que souberam da lesão, para que eles, sabendo agora da punição, estabeleçam a relação com o castigo e reafirmem a certeza de que, mais dia, menos dia, todos farão seus acertos de contas, pagarão suas dívidas e perceberão seus créditos. Não é por curiosidade, simplesmente, que o criminoso sempre retorna ao local do crime. Ele retorna para ser identificado e garantir o reconhecimento, para, posteriormente, ser detido, julgado e condenado. Para certificar-se de que cuidou de tudo para ser castigado. A fuga somente será empreendida e bem sucedida se houver a certeza de que pistas efetivas foram deixadas para que os responsáveis pela feitura da justiça a percebam e passem, a partir daí, a dar cabo da apreensão do criminoso e à aplicação da pena correspondente ao crime cometido. Não basta somente o castigo. É vital que ele venha proporcional e diretamente correspondente ao crime cometido, de fato, ou  àquele que fora “julgado” como tal.

          O que se apossa primeiramente da alma humana? Uma necessidade interna, primitiva, do crime ou uma necessidade interna, primitiva, do castigo? Podemos dizer que, para o crime, seja  qual for, não há necessidade correspondente. A não ser enquanto exceção, em casos onde haja, por parte do criminoso, o padecimento de alguma patologia de maior gravidade. Porém, para o castigo é diferente. Reclamamos punição para várias coisas que fazemos e as consideramos erradas, ou para aquelas que omitimos e a omissão nos parece errada, independente de terem ou não ocorrido de fato. A não compreensão dessa necessidade e de como supri-la nos instiga a uma transgressão que, sendo efetivada e tornada pública, desencadeará a punição correspondente. Primeiro a pessoa sente que precisa ser punida por um crime que tenha cometido contra si mesma, de forma física ou psicológica, consciente ou não. Para garantir que a punição, que o castigo seja levada a termo, cuida para que essa transgressão seja externada, justificando e garantindo, assim, a devida punição, o correspondente castigo. O castigo pelo crime amedronta muito menos o criminoso […] porque ele mesmo o reclama (moralmente), escreveu Dostoiévisk a M. Kátkov, expondo a idéia do romance.[1]

Raskólnikov, personagem principal da obra e que empresta sua consciência para o autor estabelecer o palco para o seu drama, não padecia de nenhuma patologia e nem cometera um crime para garantir a punição correspondente a uma culpa que vivenciava interiormente. Vê só: eu queria tornar-me um Napoleão e por isso matei … Então, agora dá para entender? Vejam, essa era a razão para o crime de Raskolnikóv!

          Dostoiévski, numa crítica severa ao privilégio da burguesia, e à forma discriminatória como os povos julgavam seus pares, nos coloca, ao longo da sua narrativa, questionamentos profundos e atuais: Por que um crime não é igual? Por que o diferencia, o assassino, ou o morto? Por que, dependendo de quem mata, há um tratamento diferenciado? Ou, dependendo de quem foi assassinado há, também, tratamento diferenciado? Favorecendo ou punindo uma das partes? Empresta ao seu personagem principal a capacidade de transgredir o quase impossível de transgressão: um crime para comprovar uma tese. É em torno dessa premissa que Dostoiévski faz de Crime e Castigo um clássico que conquistou seu espaço nas grandes bibliotecas mundo afora e no coração de todos nós, leitores com paixão pelo conhecimento da alma humana.

          Raskolnikóv explica assim o que aconteceu: O negócio foi o seguinte: certa vez me fiz uma pergunta: o que aconteceria se, por exemplo, no meu lugar estivesse Napoleão e, para começar a  carreira, ele não tivesse nem Toulon, nem o Egito, nem a travessia de Mont Blanc, mas em vez dessas coisas bonitas e monumentais houvesse pura e simplesmente alguma velha ridícula, usurária, que ainda por cima ele precisasse matar para lhe surrupiar o dinheiro do cofre (para a sua carreira, está entendendo)? Pois bem, será que ele se atreveria a isso se não tivesse outra saída? Não ficaria enojado por ver que isso não tinha absolutamente nada de monumental e… era censurável? Pois bem, eu te digo que sofri durante um tempo terrivelmente longo com essa  “questão”, … 

Nesse mesmo diálogo, com Sônia, um pouco mais adiante ele define quem matara:

_ Acontece, Sônia, que matei apenas um piolho, inútil, nojento, nocivo.

_  A pessoa é um piolho!?

_ Ora, eu também sei que não é um piolho, – respondeu ele, fitando-a de maneira estranha _ [ …][2]

_ Naquela ocasião, Sônia – continuou ele entusiasticamente -, eu adivinhei que o poder só se deixa agarrar por aquele que ousa inclinar-se e tomá-lo. Aqui só há uma coisa, uma só: basta apenas ousar! Então, pela primeira  vez na vida, me vinha à imaginação uma idéia que antes de mim ninguém jamais havia imaginado! Ninguém! Eis que me pareceu claro, como o sol: como é que ninguém até então, ao passar ao lado de todo esse absurdo, havia ousado e não ousava pura e simplesmente agarrar tudo pelo rabo e arremessar para o diabo! Eu… quis ousar e matei… eu só quis ousar, Sônia, eis toda a causa!

_ Ora, cale-se, cale-se! – exclamou Sônia erguendo os braços. – o senhor se afastou de Deus e Deus o golpeou, o entregou ao diabo!…

_ Aliás, Sônia, quando eu estava deitado no escuro e tudo isso se me afigurava, foi o diabo que me perturbou? Foi?

_ Cale-se! Não ria, blasfemador […]

          O crime é sempre crime ou depende de quem o comete? A justiça é sempre justiça ou depende de quem lhe fica à mercê?

          Raskólnikov caminha para o apartamento de Aliena Ivánovna com a idéia fixa de matá-la. Napoleão também marchava cavalgando à frente de seu exército. Ambos marchavam para matar. Ambos mataram. Um seria herói, o outro criminoso. O que os diferenciava?

          Raskólnikov levava sob o sobretudo o machado amarrado, caprichosamente disfarçado, mas não a ponto de fazê-lo esquecer de suas intenções. Entrou amigavelmente na casa de Aliena. A velha dera-lhe as costas buscando a luz da janela para ver melhor o objeto, um penhor, que Raskolnikov trouxera e deixava-lhe a mão. O golpe acertara em plenas têmporas, […] Ela deu um grito, mas muito fraco, e súbito arriou inteira no chão.[3]  Ele então buscou as chaves da cômoda do quarto e tentou abri-la. Pairou-lhe uma dúvida quanto se matara mesmo aquela velha e voltou então à sala para certificar-se. Via claramente que o crânio estava esfacelado e até levemente deslocado.[4]

          Voltou para ver se conseguiria abrir a cômoda do quarto, embora não tivesse nenhuma obsessão para roubar alguma coisa. Lembremo-nos  de que o propósito de seu ato tinha, consideremos desta forma, até um caráter filosófico. Raskolnikov queria confirmar uma tese. Porém, como sempre nos ocorre quando estamos transgredindo os princípios da nossa consciência ela, como que para preservar nossas vidas, reserva-nos peças surpreendentes que não foram incluídas em nossos planos. Que não foram previstas. Raskolnikov pensara em apenas um crime. O que seria suficiente para a sua tese. Apenas uma morte lhe bastaria. As circunstâncias ofertaram-lhe duas. Poderia ter optado, porém, … Súbito soaram passos de alguém no cômodo onde estava a velha […] De repente ouviu-se nitidamente um leve grito […] subitamente deu um salto, agarrou o machado e saiu do quarto correndo. No meio do cômodo estava Lisavieta em pé …[5] Lisavieta era a irmã de Aliena Ivánovna que acabara de chegar e, inteiramente branca, olhava para o corpo da irmã derramado e semicoagulado sobre a enorme e vermelha poça de sangue. O golpe foi direto no crânio, de lâmina, e de uma só vez abriu toda a parte superior da testa chegando quase às têmporas. E ela desabou.[6]

          O crime, Dostoiévski nos conta  na primeira parte desta obra. Nas restantes quatrocentas e cinqüenta e oito páginas, divididas em mais  seis partes, o autor desenovela dramas existenciais e psicológicos sobre os seus personagens. Personagens todos de nós mesmos.

          A trama consiste, densa  e profundamente alinhavada, na tentativa do assassino de entregar-se para reparar o seu crime, para ser devida e corretamente punido e na resistência, na total incapacidade de ser acreditado pelas pessoas a quem derramava pistas inquestionáveis sobre o crime que cometera. Dramaticidade permeia toda a obra. A ânsia e a necessidade da confissão submergia perante o medo de ver-se preso. Por outro lado, não suportava a certeza de que tinha que pagar a dívida contraída que via protelada a cada dia, a cada tentativa.

          Dostoiévski leva-nos então a partir daí, juntamente com Raskolnikov ao final da obra. Prende-nos. Como ao nosso condenado, joga-nos nas galés, raspa-nos a cabeça, veste-nos uniformes de retalhos para reconduzir-nos depois a um momento de clímax. Ao momento de descobrirmos, enfurecidos ou piedosos, que, se não soubermos cultivar a liberdade que é própria, e propriedade de nós, a desfrutaremos  somente após termos conseguido que a nossa sociedade nos julgue, condene e sentencie-nos a pagar por nossos crimes nas prisões desumanas. Então, lá, presos com Raskolnikov, experimentamos a liberdade. Em plenitude. Mas ouça-me, como se na quietude de uma noite bela, de lua cheia, e na calma peculiar de momentos assim reflita: será que precisamos ser agrilhoados para darmos conta da possibilidade de sermos livres? Não haverá um modo mais inteligente de descobrirmos os caminhos da liberdade? Será que foram mesmo assim traçados os caminhos de cada um de nós pelas nossas estradas vida afora?

          Esta obra é de leitura obrigatória para todos que gostam de um bom romance e apreciam partilhar do inconsciente coletivo de admiráveis escritores. Para todos  que querem conhecer um pouco mais os meandros da alma humana em seu percurso pelos caminhos do seu destino sob o jugo da solidão, da pobreza e da culpa. Porém, aqueles que optaram por exercer uma atividade profissional que constela a área das Ciências Jurídicas devem, se ainda não o fizeram, esmiuçar Crime e CastigoA compreensão, de uma fração que seja, da alma de quem entra pelos nossos tribunais com as mãos enlaçadas por algemas e conduzidos pelos homens que representam a lei e a ordem, fará de cada um de nós, estudantes ou já profissionais do Direito, pessoas mais humanizadas e conseqüentemente, mais humanas. Quem sabe uma leitura como  essa nos aproxime sobremaneira daqueles  que estarão à nossa frente nos tribunais, na condição de réus confessos ou condenados indefesos, e nos possibilite ser mais justos, menos intransigentes e, quiçá, menos onipotentes – a justiça será, então, feita com mais sabedoria e o próximo será visto como um próximo mais digno do nosso amor e da nossa compaixão. Se os olharmos com atenção de fato, humana, veremos naqueles olhos talvez nada mais que anjos cruéis que quiseram ousar, compreender a vida, amarem a si próprios. Ou serão vítimas da falta de compreensão de nós outros, “bem-vividos”? Os veredictos então, se de fato sustentados no máximo que nos for possível da compreensão sobre o ser humano, darão mais brilho e sentido aos castigos estabelecidos e nos farão a cada dia menos criminosos. Menos Miseráveis.



[1]  Nota 39, p. 428

[2] p.425

[3] p.91

[4]  p.92

[5]  p.93

[6]  p.94

“ … PENSAR É A PRIMEIRA NECESSIDADE; A VERDADE ALIMENTA TANTO QUANTO PÃO .”

 

foto Gilberto Rodrigues

Resenha

A OBRA

HUGO, Victor. Os Miseráveis

2 vol. – 1.276 p.
Tradução e Notas: Frederico Ozanam Pessoa de Barros
Apresentação: Renato Janine Ribeiro
Edição conjunta: Cosac & Naify, 2002, SP
Casa da Palavra , 2002, RJ
 
Emocionado, partilho com Marius e Cosette a morte de Jean Valjean. Os olhos marejam pela beleza e pelo vazio da obra finda, por não ter mais, amanhã, Os Miseráveis à mão. Queria tanto terminá-lo e agora o quero, tanto, interminável. Pena que, como na vida, tudo chega ao seu termo. Acabou. Haverá outra obra como essa? Jamais. Tomarei outra, com outros encantos, outras emoções, outras angústias. Ao vogar pelos Miseráveis sinto-me como Jean Valjean quando, para se redimir perante si mesmo e seus entes queridos, que nem eram “seus”, atravessou os esgotos de uma Paris fétida em suas entranhas e banhada em sangue fraterno de uma revolução miserável, cheia de medos e sonhos de liberdade, em sua superfície. Como ele, saio redimido. Passei pelos Miseráveis – torno-me um pouco menos miserável – algo novo dá-se em minh’alma.

          Leva-nos obra afora, a indiscriminação que ela apresenta entre a realidade e a ficção. Linha a linha, palavra a palavra. Conduz-nos, esperançosos ou revoltados, pelos emaranhados de tantas páginas, como prisioneiros perpetuamente condenados, pois peia-nos a atenção com emoções encordoadas, o perigoso e inofensivo Jean Valjean juntamente com todos que constelam por seu percurso, direta ou indiretamente. Ah! Creiam, são percursos que caminham como nossas próprias vidas. São cheios de encontros, desencontros, acertos, perdas, certezas, indecisões, indefinições. A ficção mesclada à história vai sulcando no leitor as marcas que deixam na alma da gente uma grande obra literária. Jean Valjean  é aquele herói anônimo, cidadão comum, ser humano como todos nós. E, como todos nós um dia, também transgrediu. Roubara, numa noite silenciosa de uma janela descuidada, um pão para saciar sua fome miserável. A sociedade, zelosa de si mesma, muitas vezes até  mais do que com as pessoas que a constituem, apodera-se dele, julga-o e o condena. Além de pagar, sobejamente a sua pena, dezenove anos como grilheta nas galés, e de regenerar-se na alma, no espírito e nas intenções, de novo a sua sociedade, raivosa e desumana, o persegue feito a uma besta-fera pela transgressão da sua condicional. Alertem-se! Que tanta periculosidade há em quem rouba para saciar a fome!? Há miséria maior que essa? É uma  perseguição em nome da lei e da legalidade, mesmo contrariando a consciência que, como se autônoma, insistia em iluminar o discernimento do perseguidor legal. É importante que vejamos como o representante da ordem e da justiça, perseguindo em nome da lei e pela lei, se desenredou de seus conflitos. A justiça não escapa, também, de suas nuanças prenhes de atrocidades indecifráveis.

          Javert, inspetor de primeira classe da polícia de Paris, em 7 de junho de 1832 não suporta o confronto que lhe desencadeou o conflito que o deixou agonizante diante da escolha entre a própria consciência e as vozes do dever. Ao deparar-se com a presença, humanizada, de Jean Valjean que inclusive lhe poupara a vida quando poderia tê-la ceifado, vê descortinar, de modo incontornável algumas obviedades de descomunais incômodos. “Convencia-se de que então era verdade, que havia exceções, que a autoridade podia ser confundida, que a regra podia ser insuficiente diante de um fato, que nem tudo se enquadrava  no texto do código, que o imprevisto exigia obediência, que a virtude de um grilheta poderia armar laços à virtude de um funcionário, que o monstruoso podia ser divino, que o destino armava emboscadas, e pensava com desespero que ele próprio não estivera ao abrigo de uma surpresa.

          Via-se obrigado a reconhecer a existência da bondade. Aquele grilheta tinha sido bom. Ele mesmo, coisa inaudita, praticara um ato de bondade. Portanto, depravara-se. Sentia-se covarde. Sentia horror de si mesmo.

          O ideal para Javert não consistia em ser humano, em ser grande, em ser sublime; consistia em ser irrepreensível. Mas acabava de falhar.[1]

Então  quase paralisado, pois havia sido adestrado para a cega obediência ao dever, a norma, ao código, à lei, constata: “Existe então alguma coisa acima do dever.[2] Nada poderia desconcertar, desestruturar tanto aquele homem que sempre viveu pela lei e pela justiça quanto “ver-se obrigado a confessar isto: a infalibilidade não é infalível, o dogma pode conter erros, o código não é completo, a sociedade não é perfeita, a autoridade pode vacilar, um desacordo no imutável é possível, os juízes são homens, a lei pode enganar-se, os tribunais podem errar!”[3]  Javert constata, atônito, a falibilidade da lei. Da justiça dos homens. Lembremo-nos de que só lhe importava “ser irrepreensível”. Ser humano pouco se lhe importava. Porque de um lado estava sua consciência e do outro o dever e, não conseguindo colher o fruto que às vezes o bom senso germina em nossas almas e, ainda mais, temendo deixar de ser irrepreensível, não suporta a impotência de não lidar com estes fenômenos humanos comuns a todos nós, como a dúvida, a angústia, a incerteza, entrega-se a um gesto de coragem. Ou de covardia? Deixo-lhes livres, para ajuizarem e darem a sentença. Após esta longa e negra madrugada de 7 de junho, o representante, até agora irrepreensível, da lei, ignorado pela sociedade, pois era muito eficiente, que só sabia que podia jamais sacrificar, por motivos pessoais, as ordens do dever, vagueia à brisa do Sena. Victor Hugo nos instiga a observá-lo: “Javert ficou  imóvel por alguns instantes, olhando aquela abertura de trevas; contemplava o invisível com uma  fixidez que se assemelhava à atenção. A água rumorejava. De repente, tirou o chapéu e o colocou  sobre o parapeito, – situado por cima das corredeiras do Sena. Um momento depois, uma silhueta alta e escura, que de longe algum transeunte notívago poderia tomar por um fantasma, apareceu de pé sobre o parapeito, curvou-se para o Sena, tornou a erguer-se e caiu pesadamente nas trevas; seguiu-se um rumor surdo, e somente a sombra soube o segredo das convulsões daquela forma obscura que desaparecia no seio das águas.”[4] Ao terminar, atônito, este parágrafo, longe de esboçar sequer um ensaio de  julgamento à sanidade de Javert anotei no pé da página: quem deverá ser responsabilizado pela morte de Javert? Quem será declarado culpado pela morte de tão brilhante defensor da ordem e da lei?  

O conteúdo da lei ,  aquele cerne que expressa a vontade do povo, escrito por seus representantes, por muitas e estranhas vezes, quando é transgredido em correção  e integridade, não importando as intenções, torna-se mais cruel e perverso que os crimes que busca corrigir ou mesmo extirpar do seu meio. Esta sociedade legal, investindo um representante com poderes plenos, desde que não lhes crie problemas, caçara  Jean Valjean com ódio obstinado. Essa perseguição emoldurada de forma brilhante pela descrição do conflito de Jean Valjean entre persistir na busca da integridade  ou deixar-se levar pelos instintos primários que alicerçam a sobrevivência das espécies, é um dos pilares desta obra.

Em outra vertente, Victor Hugo retrata através de cada um dos seus personagens como os desencontros são, em umas vezes, nada mais que encontros intensos e vitais e como, noutras vezes, os encontros deixam-nos diante de valas incomensuráveis de desencontros doloridos e, quase sempre, sem volta. O  percurso da vida da menina Cosette, mulher desde pequena e criança mesmo adulta, em busca de si própria, mesmo sem o saber, e de um grande amor, mesmo sem saber da possível correspondência, ilustra essa constatação. Há ainda outros dois pilares significativos. Um são os conceitos e pontos de vista sobre assuntos do nosso cotidiano com um enfoque peculiar. Entre tantos, também de significativa importância, há abordagens expressivas sobre a Oração[5], a Bondade[6], a Fé e a Lei[7] o Direito[8], os Jardins e os Jardineiros[9], o Trabalho[10], sobre a Revolta[11], sobre a Liberdade, Igualdade e Fraternidade[12], e o Progresso[13].

O segundo, porém não menos importante,  é o palco onde Victor Hugo enreda-nos por seus devaneios recheados de genialidade: episódios históricos e preciosos da Revolução Francesa.  História e Ficção, como em nossas vidas, tecem, com ou sem o nosso consentimento, o enredo da nossa existência. O individual construindo o coletivo, ou vice-versa. Certeza haverá jamais sobre qual intervém mais, sobre qual se dá em primeiro plano e se há interferência a favor ou contra algum processo da evolução humana na ordem dessas coisas. O acaso prevalece, sempre e irremediavelmente, ao responder de forma invariável e com precisão às demandas da necessidade. 

Esta é uma obra a qual todos que buscam um pouco de compreensão da alma humana, que ousam mirar a própria alma, deveriam  desbravar. Ninguém  melhor que o próprio Victor Hugo para nos contar o que trata em Os Miseráveis.

” O livro que o leitor tem sob os olhos neste momento é, do princípio ao fim, no seu conjunto e nos seus pormenores, sejam quais forem as intermitências , as exceções ou os desfalecimentos, a marcha do mal para o bem, do injusto para o justo, do falso para o verdadeiro, da noite para o dia, do apetite para a consciência, da podridão para a vida, da bestialidade para o dever, do inferno para o céu, do nada para Deus. Ponto de partida: a matéria; ponto de chegada: a alma. Hidra no princípio, anjo no fim”.[14]  

Aqueles que se deleitam com um bom romance, com uma obra densa, profunda, com um conteúdo de ordem universal e muito bem escrito, devem ler Os Miseráveis;

Aqueles que buscam aprofundar os seus conhecimentos sobre os mistérios que norteiam a alma humana, como os poetas, os psicólogos, os filósofos, devem ler Os Miseráveis;

Aqueles que se embrenham pelas searas do Direito, sonhando com a Justiça que redime e liberta os povos, que busca ver o ser humano de forma integrada a própria sociedade e vice-versa, e que sonha enaltecer mais a pessoa que a letra fria da lei, devem ler Os Miseráveis;

Aqueles que buscam uma compreensão mais profunda de como se dá a interação do ser humano convivendo em sua coletividade, construindo-a, transformando-a, humanizando-a, como os sociólogos, os antropólogos, os políticos, devem ler Os Miseráveis;

Aqueles que crêem que a miséria pode ser muito mais cruel e indigna para o ser humano do que a miséria decorrente da falta de pão, de moradia, de trabalho, de uma família que possa chamar de sua, ou de uma pátria onde possa se emocionar ao ouvir seu hino, devem ler Os Miseráveis;

Aqueles que ainda ficam indignados com a miséria que brota dos impedimentos do exercício da plena liberdade de expressão do pensamento, da falta de dignidade e respeito humanos, da falta de ética nas relações entre as pessoas e que ainda ficam profundamente revoltados com o autoritarismo, com os desmandos na administração da coisa pública, com a hipocrisia política, devem ler Os Miseráveis;

Aqueles que ainda acalentam no âmago de suas almas um sonho de liberdade para que TODOS sobre a terra possam um dia ter nas mãos a possibilidade de escolher os próprios caminhos, devem ler Os Miseráveis;

Aqueles que ainda sonham, fazem canções, poemas, crêem, duvidam, cismam, questionam, perguntam, amam, … devem ler Os Miseráveis;

Que esta obra, como outras tantas deste quilate, nos ajude a redimir e orientar os miseráveis do século XXI que estão, com sua desmedida desumanidade e podridão de caráter à frente de instituições públicas, como hospitais, escolas, governos, …, contaminando outra parte da humanidade que só busca a dignidade da vida, que, além da fome, quer extirpar do nosso seio outros tipos de miséria, mais desastrosa e mais abominável. Aliás com a extinção desse tipo de miséria e dos seus criadores miseráveis, não haveria mais fome, nem guerra, nem solidão. O amor voltaria, sem medos, a campear corações entre nós!

Devem ler Os Miseráveis de Victor Hugo até para descobrir que os nossos miseráveis não inspirariam romances nem qualquer outra literatura que nos propicie reflexão e deleite, pois não têm bandeira, filosofia, propósitos nobres, ética, nem dignidade. Os nossos miseráveis só nos causam indignação, asco e repugnância.

Arme-se, portanto, e embrenhe-se  por estas páginas. Volte ao tempo, visite a França que embalava o berço de tantos direitos que foram ali amalgamados, amamentados e acalentados quando este romance se construía nas mãos e no coração de Victor Hugo. Aproveite e visite também os seus esgotos … “o esgoto é a consciência da cidade. Tudo converge para ali e nele se confronta”.[15]  Você já refletiu sobre o esgoto? Victor Hugo ousou. Ousemos refletir sobre suas considerações: ” O esgoto é um cínico. Ele diz tudo. Essa sinceridade da imundície agrada-nos e nos repousa a alma. Quando passamos o tempo sofrendo na terra o espetáculo da pose que adotam a razão de Estado, o juramento, a sabedoria política, a justiça humana, a probidade profissional, a austeridade da situação, as togas incorruptíveis, consola-nos entrar num esgoto para ver o lodo correspondente”.[16]   Arme-se. Sugiro, armar para trilhar Os Miseráveis carece de bula para que não nos percamos ao incorrermos no lugar comum das interpretações do verbo ou daquelas que nos sugerem os dicionários. Armar para embrenhar pelos Miseráveis significa, exatamente, desarmar-se. Desvestir-se de seus conceitos pré-concebidos, de suas crenças, de seus valores, de suas intenções políticas, de seus votos religiosos e das tantas missas encomendadas para a remissão do passado. Desnudo e desarmado entregue-se e, boa sorte, comece. Ao terminar, ao sair da obra, desvestido, verá que muitas coisas  já não lhe servirão, outras porém lhe calçarão muito mais confortavelmente, e outras lhe causarão profunda estranheza: por que leva nos alforjes tamanha monstruosidade ou tanta insignificância?

Lamentavelmente, após quase um século e meio, o prefácio de Victor Hugo para esta obra denuncia que muitos projetos desde lá ainda não deixaram de ser tão somente intenções, se tanto. Atual e visceralmente instigante. Necessário aos que, apesar das seduções contemporâneas, insistem  em não se acovardar perante a vida, o povo, a Pátria.  Triste prefácio  que, lamentavelmente, perdura absolutamente inalterado aos olhos de quem ousa ver e aos corações de tantos povos, ainda Miseráveis. Vejamo-lo: Enquanto, por efeito de leis e costumes, houver proscrição social, forçando a existência, em plena civilização, de verdadeiros infernos, e desvirtuando, por humana fatalidade, um destino por natureza divino; enquanto os três problemas do século – a degradação do homem pelo proletariado, a prostituição da mulher pela fome, e a atrofia da criança pela ignorância – não forem resolvidos; enquanto houver lugares onde seja possível a asfixia social; em outras palavras, e de um ponto de vista mais amplo ainda, enquanto sobre a terra houver ignorância e miséria, livros como este não serão inúteis. Hauteville-House,  1862.”[17]

Esta obra é constituída a partir de cinco partes distintas, das quais o título realça a força dos seus personagens. Primeira parte: Fantine; segunda: Cosette; terceira: Marius; quarta: O idílio da rua Plumet e a Epopéia da rua Saint-Denis e, a quinta parte: Jean Valjean. Cada parte, exceto a quarta, que é constituída de 15 livros, é composta de oito livros cada. Cada um desses livros aprofunda outros personagens, contextualiza suas inter-relações e constrói o perfil psicológico de cada personagem e da obra. A trama, o “modus” como vão se emaranhando as relações ou de como vão se desenrolando, compõe, com a excepcional cultura e capacidade de bem escrever do autor , além da riqueza de detalhes e profundo conteúdo histórico, o acabamento de Os Miseráveis.

É mister ainda realçar a configuração desta edição. Primorosa. Dois volumes bonitos, bem acabados, digna  de emoldurar tamanha obra. Além disso, contém 816 notas, preciosíssimas para nortear o leitor mais curioso e, muitas vezes, contextualizá-lo.

Nas páginas 767 e 768, o leitor encontrará ainda, para seu deleite, a cronologia de Os Miseráveis.

 Somente após olharmos para a miséria de nossas almas, com ou sem os nossos medos, poderemos dar os primeiros passos para a construção de um mundo melhor, menos miserável. Depende de cada um e de todos nós.



[1] p. 652, v. II

[2] p. 653, v. II

[3] p. 654, v. II

[4] p. 658, v. II

[5] p. 462, v.I

[6] p. 463, v.I

[7] p. 465, v.I

[8] p. 235, v. II

[9] p. 285, v. II

[10] p. 362, v. II

[11] p. 421, v. II

[12] p. 545, v. II

[13] p. 582, v. II

[14] p. 587, v. II

[15] p. 603, v. II

[16] p. 604, v. II

[17] p. 20, v.I

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UMA CIDADE PODERÁ SER PERFEITA, SE IDEALIZADA POR HOMENS IMPERFEITOS?

Resenha

A OBRA

PLATÃO, A República.
Tradução: Pessoa, Ana Paula.
Ed. Sapienza, SP – SP, 2005.
1ª. Edição – 403 páginas

Mestre João – É possível, meus caros Pedro e Lucas, que um homem, já amadurecido e tornado adulto, possa vir a ser algo além daquilo que sempre foi, independente da arte e do engenho que possa engendrar para tornar-se parecido com os sonhos idealizados?
Lucas – Parece-me lógico que a impossibilidade é total.
Pedro – Mas conta-nos o que significa tal assertiva, caro mestre.
Mestre João – Imaginam meus caros, que possa alguém, um caminheiro, conduzir um aprendiz, ou iniciante, por um caminho que nunca tenha feito? Parece-me que não. Será, se tentar, apenas um aventureiro. Também, meus caros jovens, não poderá alguém construir uma cidade-estado se não tiver se aperfeiçoado enquanto pessoa, enquanto ser humano. Se tentar projetará na cidade construída todas as suas imperfeições, todas as limitações, assim como também todas as características benfazejas.
Lucas – Parece-nos óbvio que alguém com alguma imperfeição não poderá mesmo construir algo perfeito, se na construção projetará a si próprio. Afinal a criatura terá sempre as limitações do criador. A criatura será, se bem feita, a imagem e semelhança do criador.
Mestre João – Assim também te parece, meu caro Pedro, ou pensas que poderá alguém imperfeito construir algum engenho que seja perfeito?
Pedro – Caro Mestre, alinho-me incondicionalmente à reflexão de Lucas. Não poderá homem algum construir algo além de suas próprias limitações. Ocorre que homens mais aperfeiçoados poderão, isto sim, vir posteriormente e aprimorar a criatura já posta. Isso, por óbvio, se quem veio depois estiver mais aperfeiçoado.

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Em Pireu, após terem orado e admirado a cerimônia de louvores à Deusa Bêndis, cujo culto os trácios levaram à Ática, Sócrates, Glauco, Adimanto e Polemarco tornam-se personagens de um diálogo sobre a Justiça e a Injustiça.
Os nomes, como os utilizei na introdução tomando emprestados de meu pai e de meus filhos, são emprestados para dar cena ao diálogo, forma dialética de escrever adotada por Platão . Glauco e Adimanto são os nomes de dois irmãos de Platão. Sócrates emprestou-o do seu mestre, o Grande Sócrates. Polemarco era filho de Céfalo, pai do orador Lísias.
A cena inicia-se com a reunião desses amigos na casa de Céfalo com uma conversa entre ele e Sócrates sobre a velhice e sobre os receios e medos que a aproximação da morte determina. Após Céfalo retirar-se para prestar sacrifício aos Deuses o seu filho, Polemarco propõe uma definição de Justiça tomada de Simônides : dar a cada um aquilo que lhe é devido. Sócrates, com ironia, critica esta definição. O diálogo entre Polemarco e Sócrates, sobre a Justiça e a Injustiça, tomou todo o livro primeiro, dos dez que compõem a obra, e um pouco do livro segundo. A levar como verdade literal a assertiva emprestada a Simônides, as conclusões tornaram-se muito favoráveis à injustiça. Sócrates, inconformado, buscava mostrar que não poderia jamais a injustiça ser melhor que a justiça. Trasímaco instigava Sócrates com afirmativas como estas: o justo é a mesma coisa: o interesse do mais forte, [25] . O homem justo é em todos os lugares inferior ao injusto, [31]. Ao término do livro primeiro Sócrates dirige-se a Trasímaco e afirma-lhe que jamais a injustiça é mais vantajosa que a justiça, [p. 46]. Sócrates refuta as afirmativas de seu contendor, insistindo principalmente no fato de que sem justiça, sociedade alguma é possível.
Glauco que até aquele momento ouvira, consente na retirada de Trasímaco, mas fica inconformado, pois Sócrates se safaria daquela peleja. Não satisfeito com a possibilidade de sair dali sem saber sobre se era a justiça ou a injustiça a imprescindível, volta-se para Sócrates: Ainda não ouvi ninguém falar da justiça e da superioridade sobre a injustiça como o desejaria: gostaria de ouvir sendo elogiada em si mesma e por ela mesma. E é principalmente de ti que espero esse elogio. [52].
Como que pressentindo não conseguir convencer Glauco nem Adimanto, que entrara no diálogo, Sócrates enceta, de fato, a obra em apreciação:
Sócrates – A Justiça é, como declaramos, um atributo não apenas do indivíduo, mas também de toda a cidade?
Adimanto – Sim.
Sócrates – E a cidade não é maior que o indivíduo?
Adimanto – Claro.
Sócrates – Logo, numa cidade, a justiça é mais visível e mais fácil de ser examinada. Assim, se quiserdes, começaremos por procurar a natureza da justiça nas cidades; em seguida, procuraremos no indivíduo, para descobrirmos a semelhança da grande justiça com a pequena.
Adimanto – Estou de acordo.
Sócrates – Porém, se estudarmos o nascimento de uma cidade, não observaremos a justiça aparecer nela tanto quanto a injustiça?
Adimanto – É possível.
Sócrates – Então encontraremos mais facilmente o que buscamos?
Adimanto – Sem dúvida.
Sócrates – Portanto, devemos ir até o fim nesta busca? Em minha opinião, não é tarefa fácil. Ponderai-a.
Adimanto – Está ponderado. Podes prosseguir.
Sócrates – O que causa o nascimento de uma cidade, penso eu, é a impossibilidade que cada indivíduo tem de se bastar a si mesmo e a necessidade que sente de uma porção de coisas; ou julgas que existe outro motivo para o nascimento de uma cidade?
Adimanto – Não.
Sócrates – Portanto, um homem une-se a outro homem para determinado emprego, outro ainda para outro emprego, e as múltiplas necessidades reúnem na mesma residência um grande número de associados e auxiliares; a esta organização demos o nome de cidade, não foi?
Adimanto – Exatamente. [64]. […] Sócrates – Construamos, pois, em pensamento, uma cidade, cujos alicerces serão nossas necessidades. [65].
Com o objetivo de montar, de construir uma cidade perfeita para poder compreender a origem da justiça e, por conseqüência da injustiça, Platão, pela fala de Sócrates traça um projeto de construção desta cidade perfeita. Para satisfazer as questões que lhe haviam sido feitas, começa seu discurso pela origem das sociedades. E, nestas circunstâncias, a cidade perfeita é a cidade justa, a cidade onde os povos serão felizes. A divisão do trabalho, como saber o que fazer cada um, a necessidade do trabalho manual, torna-se importante entre eles. Por essa razão o conceito de justiça sempre esteve vinculado à troca de produtos. Platão enreda-se pelos alicerces propostos desde a alimentação, passando pela moradia até ao vestuário. Considerando que cada um deveria desempenhar a sua função para toda a comunidade, estabelece como parâmetro, como referência, a busca de que cada um deve desempenhar aquilo que é sua habilidade. A natureza não faz todos os homens iguais, mas diferentes em aptidões e aptos para esta ou aquela função. Esta aptidão, esta peculiaridade deveria então tornar-se determinante para que as mais diversas atividades se desenvolvessem. Platão realça que cada um deve desenvolver-se naquilo que lhe é próprio, que se caracteriza como sua melhor habilidade. Imaginava nosso filósofo que cada um tivesse um profundo e sólido conhecimento de si próprio, de suas habilidades, de sua natureza e pendor? Ou para ele seria tão óbvio, já àquela época, que o autoconhecimento era inerente ao homem? Aborda ainda a primeira forma de educação e realça que é dada sob a forma de fábulas, pois o homem é bastante imperfeito para compreender de outro modo. Estas fábulas objetivavam inculcar conceitos como: Deus é bom, é imutável e não é a causa do mal. Destes pressupostos e princípios, foram, em sua cidade idealizada, surgindo todas as profissões que, juntamente com Glauco, Adimanto e Sócrates, entendiam como necessárias, importantes e desejáveis para que as gentes dali vivessem felizes pois estariam sob a proteção do manto da justiça. A certa altura, cidade desenhada, profissões estabelecidas, Sócrates pergunta a seus interlocutores: E onde encontraremos a justiça e a injustiça? De qual dos elementos que mencionamos julgas que elas se originam? [68]. Um traço forte da obra é a manutenção constante do fio condutor. Não há tergiversações nem divagações. A condução da obra é direta, objetiva e profunda. Reclama-nos fôlego em muitas e densas passagens para mergulharmos em propostas que põe e nos convida à reflexão. Ainda no livro segundo, delineia conceitos importantes: a pátria, a guerra e sua origem, o exército e sua formação, seu modo de seleção, a educação, abordando sua primeira forma e realçando que é dada sob o feitio de fábulas, pois o homem é bastante imperfeito para compreender de outro modo. Estas fábulas objetivavam inculcar conceitos como: Deus é bom, é imutável e não e a causa do mal: Deus não é a causa de tudo, mas somente do bem. [80] E ao discorrer sobre as características daquele que deverá ser o guardião da cidade relembra-nos nosso propósito, dele e do leitor:
Sócrates – Tal será, então o caráter do nosso guerreiro. Mas como educá-lo e instruí-lo? O exame desta questão pode ajudar-nos a descobrir o objeto de todas as nossas pesquisas, isto é, como surgem a justiça e a injustiça numa cidade. Precisamos sabê-lo, porque não queremos nem omitir um ponto importante nem perder-nos em divagações inúteis. [75] Discorre sobre o bem e o mal, sobre o processo de educação dos jovens e realça que o começo, em todas as coisas é sempre o mais importante. Ensina que o ser perfeito, em geral, tira a sua perfeição da natureza.
Sócrates – A propósito dos Deuses… [89] Assim começa o livro terceiro, no qual busca examinar os mitos relacionados à vida no além. A esta altura, Platão recheia sua obra de conceitos. Da necessidade de extinguir o terror que a morte possa provocar banindo os usos funerários que consideram a morte como um mal. Para o autor, os homens devem recear a escravidão mais que a morte. [90]. Aborda o caráter público da mentira e alega que, se no interesse da cidade, em virtude dos inimigos e dos cidadãos mentir pode até ser válido: se compete a mentir é aos líderes da cidade. [93]. Discorre sobre dar e receber presentes, sobre ter ambição, e sobre a maneira mais adequada de censurar os poetas para que não profiram disparates sobre os homens. Trata a melodia, subdividindo-a, enquanto composição em três elementos: as palavras, a harmonia e o ritmo. Realça a importância da pintura e da educação musical como a parte principal da educação porque o ritmo e a harmonia têm grande poder de penetrar na alma e tocá-la fortemente: louva as coisas belas, recebe-as alegremente no espírito, para fazer delas o seu alimento, e torna-se assim nobre e bom; ao contrário, censura justamente as coisas feias, odeia-as logo na infância antes de estar de posse da razão,… [110] Ainda como que querendo estabelecer todos os conceitos necessários para construir a sua cidade ideal, como se os conceitos fossem tijolos e ao mesmo tempo argamassa, ele continua a desfiá-los. Vai do conhecimento, do amor autêntico, da embriaguez, do regime alimentar, da ginástica até a morte, e a necessidade de evitá-la ou deixar que conduza para o Hades aqueles que, tendo um ofício, mas não tendo condições de exercê-lo, não terão também nenhuma vantagem em viver. Referindo-se a Esculápio afirma que fora para os homens com uma boa constituição, mas que sofrem de uma doença localizada que ele inventou a medicina libertou-os das doenças mediante remédios e indicações, ordenando-lhes ao mesmo tempo que não mudassem em nadas seu regime habitual, a fim de não prejudicarem os negócios da cidade. Quanto aos indivíduos inteiramente minados pela doença, não tentou prolongar-lhes a miserável vida por meio de um lento tratamento de infusões e purgas e pô-los em condições de engendrar filhos destinados, provavelmente, a parecerem-se com eles; não pensou que fosse necessário tratar um homem incapaz de viver no círculo de deveres que lhe é fixado, porque daí não é vantajoso nem para o doente nem para a cidade. [117] Ainda dialogando com Glauco, fala sobre o médico mais hábil, o bom juiz e exorta que um bom juiz não seja jovem, mas velho. Apresenta dois elementos, que segundo ele, existem na alma: a coragem e a sabedoria. Características necessárias para um grande líder capaz de salvar a constituição. E agora nos falta determinar a escolha dos cidadãos que devem mandar ou obedecer. Os velhos deverão mandar e os jovens obedecer. [123] Fala da necessidade de inteligência, autoridade e dedicação à coisa pública e da necessidade de escolher alguém que, com boa vontade sempre agirá em favor do Estado.
No livro quatro, Platão faz aprofundadas reflexões sobre a justiça e a injustiça. Esta temática toma conta deste volume. Sócrates afirma que seu deseja é um Estado feliz e que a virtude existe na organização política descrita. Observa ser perigoso que cada um queira e deseje acrescentar à sua condição uma outra situação para concluir que tanto a riqueza quanto a pobreza prejudicam a arte e os artesãos. O conflito entre ricos e pobres teria a capacidade de dividir ao meio a cidade ideal e criar duas cidades inimigas uma da outra. Retoma o conceito da necessidade da música para educar o jovem. Enfatiza o conceito de justiça individual e faz notar que a alma deve ser dividida em três partes: a cognitiva, a irascível e a apetitiva. Além destas três partes, destaca as quatro virtudes necessárias para a boa formação e administração de uma cidade perfeita: sabedoria, coragem, temperança (ou moderação) e justiça e sobre estas virtudes refere-se assim: Temos assim três virtudes que foram descobertas na nossa cidade: sabedoria, coragem e moderação para os chefes; coragem e moderação para os guardas; moderação para o povo. No que diz respeito à quarta, pela qual esta cidade também participa na virtude, que poderá ser? É evidente que é a Justiça. [150] A justiça e a injustiça. Em que consiste cada uma, quais as conseqüências, o que significa. Após aprofundar no seu diálogo estes conceitos propõe: Vamos transladar agora para o indivíduo o que encontramos na cidade e, se descobrirmos que a justiça é isso, tanto melhor. E, chega através de inúmeros obstáculos penosamente superados, a estabelecer que existam, na cidade e na alma do indivíduo, princípios correspondentes e iguais em número.
Sócrates – Então, amigo Glauco, afirmaremos que a justiça tem no indivíduo o mesmo caráter que na cidade. […] Lembremo-nos então de que, se cada um de nós desempenhar a sua própria tarefa, será também justo e desempenhará a tarefa que lhe é própria. [163]. Ao concluir este livro Platão diz que há cinco formas de governo e cinco espécies de alma.
A organização do Estado volta ao centro do diálogo, com ênfase na justiça emoldurada na sentença de que a justiça assegura a liberdade. Intenta demonstrar que o que é possível no plano teórico é também realizável no prático. Passa Sócrates então a demonstrar se pode dar uma constituição ao Estado. Esta se baseia no comunismo das relações sexuais, ou na comunhão das mulheres. Neste ponto do diálogo, há uma consideração que sua própria natureza deixa-nos, mundo civilizado, com uma sensação de profundo atraso com relação à discriminação entre os sexos. Afirma que muitas mulheres são superiores a muitos homens, em muitas atividades. [181] Realça-lhes uma maior disposição inata para a medicina ou para música, como observa que com relação à sabedoria há umas que a amam e outras que a odeiam. Admite que têm a mesma aptidão para a defesa de uma cidade e observa que a única diferença é que a mulher é mais fraca e o homem é mais forte, como admite que um homem pode ser melhor e outro pior, que não são iguais. Ensina que o útil é belo e que só o nocivo é vergonhoso. Discorre deste assunto antes de mostrar-nos que as mulheres dos nossos guerreiros pertencerão a todos: nenhuma delas habitará em particular com nenhum deles. Da mesma maneira, os filhos serão comuns e os pais não conhecerão seus filhos nem estes a seus pais. [184] Propugna uma raça pura para garantir a beleza e a utilidade da cidade. Trata-se de uma parte totalmente extemporânea, mas necessária enquanto viés de reflexão para que possamos contextualizar a obra em toda a sua dimensão e profundidade. Busca compreender qual é o maior bem para a cidade e demonstra como e por que a educação das crianças deve ser feita sob a responsabilidade comuns dos dois sexos.
É possível executar uma coisa tal como se descreve? Ou é próprio da natureza das coisas que a execução tenha menos influência sobre a verdade que o discurso [206]? Provoca Platão. Acredita e defende a possibilidade de se praticar o que propõe, porém estabelece uma condição: Enquanto os filósofos não forem reis nas cidades, ou aqueles que hoje denominamos reis e soberanos não forem verdadeira e seriamente filósofos, enquanto o poder político e a filosofia não convergirem num mesmo indivíduo, enquanto os muitos caracteres que atualmente perseguem um ou outro destes objetivos de modo exclusivo não forem impedidos de agir assim, não terão fim, meu caro Glauco, os males das cidades, nem, conforme julgo, os do gênero humano, e jamais a cidade que nós descrevemos será edificada. [207] Diremos que o filósofo deseja a sabedoria não em uma ou alguma das partes, mas em seu conjunto, em sua totalidade. Denomina filósofo apenas aqueles que em tudo se prendem à realidade [217]. Ainda digno de nota neste quinto livro, é a reflexão do que seja conhecimento e opinião. O conhecimento é o cerne e o propósito da ciência, posto que o objetivo da ciência seja conhecer o que é, exatamente tal como é, enquanto que o propósito da opinião é julgar pelas aparências. Para Platão, a opinião é algo intermediário entre a ciência e a ignorância e relaciona o ser à ciência e o não-ser à ignorância. Mostra-nos que o objetivo da opinião não é o ser nem o não-ser, opinião não é nem ciência nem ignorância. Sócrates conclui este livro: Afirmaremos, pois, que as pessoas que enxergam muitas coisas belas, mas não apreendem o próprio belo e não podem seguir aquele que gostaria de guiá-las nessa contemplação, que enxergam muitas coisas justas sem verem a própria justiça e assim por diante, essas pessoas, diremos nós, opinam sobre tudo, mas não sabem nada a respeito das coisas sobre as quis opinam.
O livro sexto amplia o conceito, o papel e a importância do que entende ser filósofo. No livro anterior afirmara que o Estado só é possível se os filósofos reinarem ou se os reis se tornarem filósofos. Inicia agora definindo mais fundamente: filósofos são aqueles que podem chegar ao conhecimento do imutável, ao passo que os que não podem, mas erram na multiplicidade dos objetos variáveis, não são filósofos, cumpre-nos ver a quem escolheríamos para governar o Estado. […] Em que diferem dos cegos os que não possuem o conhecimento da essência das coisas. [221] O filósofo é aquele que possui um espírito repleto de moderação e de graça, cujas tendências inatas guiarão para a essência de cada ser.
Com profunda capacidade e perspicácia ensina que os filósofos mais sábios são inúteis à maioria da sociedade, mas faz notar que essa inutilidade é devida aos que não empregam os sábios, e não aos próprios sábios. A mais grave acusação que fere a filosofia e contribui para perpetuação desta percepção sobre o filósofo vem daqueles que se dizem filósofo sem o ser. Almas incultas que se metem a filosofar produzem somente frivolidades e sofismas.
A formação de um filósofo, considerando que é impossível que o povo seja filósofo [234], é discorrida longamente ao ensinar como o Estado deve agir para que a filosofia não pereça: Afirmo, diz Sócrates, que os melhores magistrados devem ser os filósofos. [245] Achas justo que um homem fale do que ignora, como se o soubesse? Pergunta-nos.
Ah, a linguagem! Já tão longinquamente (há mais ou menos 2.400 anos) Platão a reconhecia e dava-lhe lugar de bandeirante para a compreensão dos povos e de suas formas de governo e de administração: declaramos que existem numerosas coisas belas, numerosas coisas boas, muitas coisas de outras espécies cuja existência afirmamos e distinguimos na linguagem. [251].
O que derrama a luz da verdade sobre os objetos do conhecimento e proporciona ao indivíduo o poder de conhecer é a idéia do bem. Compara o bem ao sol, à luz do sol: Aquilo que o bem é, no campo da inteligência em relação ao pensamento e aos seus objetos, o Sol o é no campo do visível, em relação à vista e aos seus objetos. [253] O diálogo final do livro sexto conduz-nos para o ápice da obra:
Glauco -… Queres estabelecer que o conhecimento do ser inteligível, que é adquirido pela ciência da dialética, é mais claro que aquele que é adquirido pelo que denominamos ciências, as quais possuem hipóteses como princípios. É certo que aqueles que se consagram às ciências são obrigados a utilizar o raciocínio, e não os sentidos. […] Sócrates – Compreendeste-me bastante bem. Aplica agora as quatro operações da alma: a inteligência, o conhecimento discursivo, a fé, e a imaginação. [257].
Imagina homens numa morada subterrânea, em forma de caverna… A alegoria da caverna, provavelmente o tema mais visitado desta obra, é a temática do sétimo livro. A alegoria demonstra os múltiplos obstáculos que o homem encontra na investigação da verdade e a necessidade de educar o filósofo enquanto aquele que nos conduzirá ao encontra da verdade. Aprofunda mais o conceito de educação: a arte que se propõe a conservação da alma, e que procura os meios mais fáceis e mais eficazes de o conseguir. Não consiste em dar visão ao órgão da alma, visto que já tem; mas, como ele está mal orientado e não olha para onde deveria, ela esforça-se por encaminhá-lo na boa direção. [266] A contradição conduzirá sua alma à essência. O que não desperta sensações opostas é incapaz de despertar o entendimento; por isso certos objetos convidam a alma à reflexão e outros não. Embrenha-se Sócrates então a buscar uma ciência que pudesse em sua totalidade forçar o espírito a servir-se da mais pura inteligência para alcançar a verdade pura. Perscrutou a Geometria, passou pela Astronomia até chegar à Dialética: O método dialético é o único que se eleva, destruindo as hipóteses, até o próprio princípio para estabelecer com solidez as suas conclusões, e que realmente afasta, pouco a pouco, o olhar da alma da lama grosseira em que está mergulhado e o eleva para a região superior, usando como auxiliares para esta conversão às artes que enumeramos.
Sócrates – Bastará, então, chamar ciência à primeira divisão, conhecimento discursivo à segunda, fé a terceira e imaginação à quarta; as duas últimas denominaremos opinião, e as duas primeiras, inteligência. A opinião terá por objetivo a mutabilidade, e a inteligência, a essência. [286].
Sem perder de vista o que ensina a Alegoria da Caverna e priorizando conceitos sobre educação e aprendizado, Platão fala com atualidade presente: o homem livre não deve ser obrigado a aprender como se fosse um escravo. Os exercícios físicos, quando praticados à força, não causam dano ao corpo, mas as lições que se fazem entrar à força na alma nela não permanecerão. [290] Discursando sobre o aprendizado arremata: o espírito que tem capacidade de síntese é dialético, os outros não o são. A dialética somente será iniciada depois dos trinta anos e a educação especial deverá começar somente depois de uma educação geral e só será dada a indivíduos escolhidos por meio de sucessivas eliminações.
O excesso de liberdade conduz a um excesso de servidão, tanto no indivíduo como no Estado. [326] Esta dicotomia é o âmago do oitavo livro. O que chamaríamos simplesmente de forma de governo hodiernamente, é descrito como um processo de construção de um modo de ser que se dá no Estado como processo conseqüente de vivências no plano individual. O que se dá na cidade, e conseqüentemente no Estado, é o mesmo e de modo semelhante àquilo que se dá com o indivíduo, por isso, ensina-nos Platão, a cidade será conseqüência do caráter que se introjetar, estabelecer e der sustentação ao indivíduo.
Platão propõe analisar os costumes do Estado antes de estudar os dos particulares. Alegando não ter outra designação a dar, chama ao primeiro modelo de governo de timocracia, ao segundo de oligarquia, ao terceiro denominou democracia e ao quarto, tirania. Entende que para cada um destes modelos, enquanto forma de atuação do Estado, há um modelo correspondente, enquanto comportamento, no indivíduo. Pode-se falar então do homem tirano, do homem democrático, do oligárquico e do “timocrático”.
Considerando que toda constituição se modifica de acordo com quem detém o poder, quando a discórdia grassa entre seus membros, pois tudo o que nasce é passível de corrupção, nenhum sistema de governo durará eternamente, mas dissolver-se-á. Cada vez que houver a transformação de um processo de governo para outro, este virá eivado de um processo degenerativo.
Se na timocracia prevalece a ambição, na oligarquia, governo que se segue ao anterior, o governo fundamenta-se no recenseamento, em que os ricos mandam e o pobre não participa do poder. Observa Platão que, quando os homens ricos são honrados numa cidade, a virtude e os homens virtuosos são tidos em menor estima. Como decorrência deste modelo, tal cidade não pode ser una, mas dupla: a dos pobres e a dos ricos, que vivem sobre o mesmo solo e conspiram sem cessar uns contra os outros. [309]. À Oligarquia segue-se a Democracia, sistema que, no entendimento de Platão, os chefes devem a sua autoridade aos grandes bens que possuem. Dessa forma, recusar-se-ão, suponho, a fazer uma lei para reprimir a libertinagem dos jovens e a dissipação de seu patrimônio, visto que têm a intenção de comprá-lo ou de o conseguirem pela usura, para se tornarem ainda mais ricos e poderosos. [314] Para Platão, num Estado os cidadãos não podem honrar a riqueza e ao mesmo tempo adquirir a temperança conveniente, mas são obrigados a renunciar a uma ou a outra. Para ele, a democracia surge quando os pobres, tendo vencido os ricos, eliminam uns, expulsam outros e dividem por igual com os que ficam o governo e os cargos públicos. E, devo dizer, na maior parte das vezes estes cargos são atribuídos por sorteio. [316]. Neste Estado, continua Platão [317] não há a obrigação de mandar se não se for capaz de tal, nem a obedecer se não quiser. Da Democracia decorre o quarto poder e a ele assim refere Platão: resta-nos estudar agora a mais bela forma de governo e o mais belo caráter: quero dizer, a tirania e o tirano. À página trezentos e vinte e quatro sentencia Sócrates: Quando um Estado democrático, sedento de liberdade, passa a ser dominado por maus chefes, que fazem com que ele se embriague com esse vinho puro para além de toda a decência, então, se os seus magistrados não se mostram inteiramente dóceis e não lhe concedem um alto grau de liberdade, ele castiga-os, acusando-os de serem criminosos e oligarcas. E ridiculariza os que obedecem aos magistrados e trata-os de homens servis e sem valor. […] Num Estado assim o espírito de liberdade se estende a tudo. Da interior das famílias a anarquia se transmite até os próprios animais.
Adimanto – O que queres dizer?
Sócrates – Que o pai se habitua a tratar o filho como seu igual e a temer os filhos dele. Que o filho se assemelha ao pai e não respeita nem teme os pais, porque quer ser livre. Que o meteco se torna igual ao cidadão, o cidadão ao meteco e do mesmo modo todo estrangeiro.
Adimanto – Na verdade, é assim.
Sócrates – aqui tens o que acontece e outros pequenos abusos como estes. O mestre receia os discípulos e lisonjeia-os, os discípulos fazem pouco caso dos mestres e dos pedagogos. De modo geral, os jovens imitam os mais velhos e disputam com eles em palavras e ações. Os idosos, por seu lado, sujeitam-se às maneiras dos jovens e mostram-se cheios de gentileza e petulância, imitando a juventude, com medo de serem considerados enfadonhos e despóticos.
Adimanto – É assim, realmente.
Sócrates – Mas, meu caro, o limite extremo do excesso de liberdade que tal Estado oferece é atingido quando as pessoas dos dois sexos que se compram como escravos não são menos livres do que aqueles que as compraram. [325].
E este livro oitavo fecha-se: Então, chegamos ao que se costuma chamar de tirania. O povo, de acordo com o ditado, evitando a fumaça da submissão a homens livres, caiu no fogo do despotismo dos escravos e, em troca de uma liberdade excessiva e inoportuna, vestiu a farda mais dura e mais amarga das servidões. [334] Ao livro nove. Neste livro é descrito a degeneração do indivíduo, a degenerescência dos caracteres humanos enquanto correspondentes da forma de degeneração do Estado.
No livro dez, Platão fala de uma alma imortal, realçando o fato de ser a injustiça uma das moléstias que mais atingem a sua vitalidade. Reconhece um Deus como criador e retoma a questão da imitação artística: representar o que é tal como e ou o que parece tal como parece é a imitação da aparência. [373] Sócrates – A lei diz que não há nada mais belo do que manter a calma, tanto quanto possível, na infelicidade, e não se afligir, porque não se pode distinguir com clareza o bem do mal que ela comporta; não se ganha nada em indignar-se, nenhuma das coisas humanas merece ser tomada muito a sério, e, numa ocasião dessas, agindo com destempero, seria impossível ver o que estaria vindo em nosso socorro, porque nosso desgosto nos impediria. [382] Sócrates exorta Glauco sobre o grande combate que cada um deve combater cotidianamente, maior do que se pensa, aquele em que se trata de nos tornarmos bons ou maus; por isso, nem glória, nem as riquezas, nem a dignidade, nem mesmo a poesia, merecem que nos deixemos resvalar para o desprezo da justiça e das outras virtudes. [387] Para Platão o que destrói e corrompe as coisas é o mal; o que as conserva e desenvolve é o bem. Os vícios tornam má a alma: a injustiça, a intemperança, a covardia, a ignorância.
Platão admite a imortalidade da alma: temos de admitir, então que, quando um homem justo está exposto à pobreza, à doença ou a qualquer outro destes pretensos males, isso acabará por ser-lhe proveitoso, durante a vida ou depois da morte, pois os Deuses não podem desprezar alguém que se esforça por ser justo e tornar-se, tanto quanto é possível ao homem, pela prática da virtude, semelhante a ela. [393] A República termina com o mito ou a história de Er em que, depois de uma sábia alegoria astronômica, é exposto o sistema de transmigração das almas, que se dá depois de vários milhares de anos, depois de cada existência ter sido recompensada ou punida com uma morada da alma no céu ou no inferno. Aos justos é reservada uma entrada à direita, que sobe até o céu. Aos maus, a entrada à esquerda, por uma escada descendente.

Ler Platão, em a República, aproximadamente dois mil e quatrocentos anos após ele ter-se debruçado em profunda reflexão sobre as condições da formação e do modo de se organizar enquanto sociedade, para dar forma ao que chamou de governo, ou de Estado, é indiscutivelmente tomar a entrada da direita, aquela que ascende. De mal em realizar tal percurso, é a constatação de que, apesar da aparência de progresso e evolução caminhamos desenfreadamente pela entrada da esquerda, rumo ao mais intenso dos infernos. A sensação que fica, após o término da República, é que de evolução mesmo pouco se tem o que falar. Como estamos parecidos com aquilo que descrevera Platão há tanto tempo!

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NOTAS
1) Platão nasceu em Atenas ou em Egina, aos sete dias do mês de tergelion (maio) de 427 a.C. Faleceu em 348/347, aos 80 anos de idade. Era filho de Aríston cuja genealogia remontava a Codro e de Perictioné que, por sua vez descendia de um irmão de Sólon. O nome Platão, que lhe deu celebridade, é um apelido que lhe adveio do fato de possuir ombros largos. Seus pais lhe haviam dado o nome de Arístocles.
Platão teve dois irmãos mais velhos, Adimanto e Gláucon e uma irmã, Potone, que foi mãe de seu discípulo e sucessor, Speusipo.
Quando do processo de Sócrates em 399, quando este foi condenado a morrer bebendo cicuta, quis ele e mais alguns companheiros apresentar-se como fiador do mestre. Após a morte do mestre, retirou-se Platão para Mégara com outros socráticos e ali conheceu Euclides.

2) Simônides de Ceos (556 – 469 a.C.), poeta lírico grego, famoso por suas elegias, odes e epigramas.

3) O número entre colchetes se refere ao número da página onde se encontra a referida citação

4) Meteco : Designação que se dava ao estrangeiro domiciliado em Atenas, Aurélio

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