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UMA CIDADE PODERÁ SER PERFEITA, SE IDEALIZADA POR HOMENS IMPERFEITOS?

Resenha

A OBRA

PLATÃO, A República.
Tradução: Pessoa, Ana Paula.
Ed. Sapienza, SP – SP, 2005.
1ª. Edição – 403 páginas

Mestre João – É possível, meus caros Pedro e Lucas, que um homem, já amadurecido e tornado adulto, possa vir a ser algo além daquilo que sempre foi, independente da arte e do engenho que possa engendrar para tornar-se parecido com os sonhos idealizados?
Lucas – Parece-me lógico que a impossibilidade é total.
Pedro – Mas conta-nos o que significa tal assertiva, caro mestre.
Mestre João – Imaginam meus caros, que possa alguém, um caminheiro, conduzir um aprendiz, ou iniciante, por um caminho que nunca tenha feito? Parece-me que não. Será, se tentar, apenas um aventureiro. Também, meus caros jovens, não poderá alguém construir uma cidade-estado se não tiver se aperfeiçoado enquanto pessoa, enquanto ser humano. Se tentar projetará na cidade construída todas as suas imperfeições, todas as limitações, assim como também todas as características benfazejas.
Lucas – Parece-nos óbvio que alguém com alguma imperfeição não poderá mesmo construir algo perfeito, se na construção projetará a si próprio. Afinal a criatura terá sempre as limitações do criador. A criatura será, se bem feita, a imagem e semelhança do criador.
Mestre João – Assim também te parece, meu caro Pedro, ou pensas que poderá alguém imperfeito construir algum engenho que seja perfeito?
Pedro – Caro Mestre, alinho-me incondicionalmente à reflexão de Lucas. Não poderá homem algum construir algo além de suas próprias limitações. Ocorre que homens mais aperfeiçoados poderão, isto sim, vir posteriormente e aprimorar a criatura já posta. Isso, por óbvio, se quem veio depois estiver mais aperfeiçoado.

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Em Pireu, após terem orado e admirado a cerimônia de louvores à Deusa Bêndis, cujo culto os trácios levaram à Ática, Sócrates, Glauco, Adimanto e Polemarco tornam-se personagens de um diálogo sobre a Justiça e a Injustiça.
Os nomes, como os utilizei na introdução tomando emprestados de meu pai e de meus filhos, são emprestados para dar cena ao diálogo, forma dialética de escrever adotada por Platão . Glauco e Adimanto são os nomes de dois irmãos de Platão. Sócrates emprestou-o do seu mestre, o Grande Sócrates. Polemarco era filho de Céfalo, pai do orador Lísias.
A cena inicia-se com a reunião desses amigos na casa de Céfalo com uma conversa entre ele e Sócrates sobre a velhice e sobre os receios e medos que a aproximação da morte determina. Após Céfalo retirar-se para prestar sacrifício aos Deuses o seu filho, Polemarco propõe uma definição de Justiça tomada de Simônides : dar a cada um aquilo que lhe é devido. Sócrates, com ironia, critica esta definição. O diálogo entre Polemarco e Sócrates, sobre a Justiça e a Injustiça, tomou todo o livro primeiro, dos dez que compõem a obra, e um pouco do livro segundo. A levar como verdade literal a assertiva emprestada a Simônides, as conclusões tornaram-se muito favoráveis à injustiça. Sócrates, inconformado, buscava mostrar que não poderia jamais a injustiça ser melhor que a justiça. Trasímaco instigava Sócrates com afirmativas como estas: o justo é a mesma coisa: o interesse do mais forte, [25] . O homem justo é em todos os lugares inferior ao injusto, [31]. Ao término do livro primeiro Sócrates dirige-se a Trasímaco e afirma-lhe que jamais a injustiça é mais vantajosa que a justiça, [p. 46]. Sócrates refuta as afirmativas de seu contendor, insistindo principalmente no fato de que sem justiça, sociedade alguma é possível.
Glauco que até aquele momento ouvira, consente na retirada de Trasímaco, mas fica inconformado, pois Sócrates se safaria daquela peleja. Não satisfeito com a possibilidade de sair dali sem saber sobre se era a justiça ou a injustiça a imprescindível, volta-se para Sócrates: Ainda não ouvi ninguém falar da justiça e da superioridade sobre a injustiça como o desejaria: gostaria de ouvir sendo elogiada em si mesma e por ela mesma. E é principalmente de ti que espero esse elogio. [52].
Como que pressentindo não conseguir convencer Glauco nem Adimanto, que entrara no diálogo, Sócrates enceta, de fato, a obra em apreciação:
Sócrates – A Justiça é, como declaramos, um atributo não apenas do indivíduo, mas também de toda a cidade?
Adimanto – Sim.
Sócrates – E a cidade não é maior que o indivíduo?
Adimanto – Claro.
Sócrates – Logo, numa cidade, a justiça é mais visível e mais fácil de ser examinada. Assim, se quiserdes, começaremos por procurar a natureza da justiça nas cidades; em seguida, procuraremos no indivíduo, para descobrirmos a semelhança da grande justiça com a pequena.
Adimanto – Estou de acordo.
Sócrates – Porém, se estudarmos o nascimento de uma cidade, não observaremos a justiça aparecer nela tanto quanto a injustiça?
Adimanto – É possível.
Sócrates – Então encontraremos mais facilmente o que buscamos?
Adimanto – Sem dúvida.
Sócrates – Portanto, devemos ir até o fim nesta busca? Em minha opinião, não é tarefa fácil. Ponderai-a.
Adimanto – Está ponderado. Podes prosseguir.
Sócrates – O que causa o nascimento de uma cidade, penso eu, é a impossibilidade que cada indivíduo tem de se bastar a si mesmo e a necessidade que sente de uma porção de coisas; ou julgas que existe outro motivo para o nascimento de uma cidade?
Adimanto – Não.
Sócrates – Portanto, um homem une-se a outro homem para determinado emprego, outro ainda para outro emprego, e as múltiplas necessidades reúnem na mesma residência um grande número de associados e auxiliares; a esta organização demos o nome de cidade, não foi?
Adimanto – Exatamente. [64]. […] Sócrates – Construamos, pois, em pensamento, uma cidade, cujos alicerces serão nossas necessidades. [65].
Com o objetivo de montar, de construir uma cidade perfeita para poder compreender a origem da justiça e, por conseqüência da injustiça, Platão, pela fala de Sócrates traça um projeto de construção desta cidade perfeita. Para satisfazer as questões que lhe haviam sido feitas, começa seu discurso pela origem das sociedades. E, nestas circunstâncias, a cidade perfeita é a cidade justa, a cidade onde os povos serão felizes. A divisão do trabalho, como saber o que fazer cada um, a necessidade do trabalho manual, torna-se importante entre eles. Por essa razão o conceito de justiça sempre esteve vinculado à troca de produtos. Platão enreda-se pelos alicerces propostos desde a alimentação, passando pela moradia até ao vestuário. Considerando que cada um deveria desempenhar a sua função para toda a comunidade, estabelece como parâmetro, como referência, a busca de que cada um deve desempenhar aquilo que é sua habilidade. A natureza não faz todos os homens iguais, mas diferentes em aptidões e aptos para esta ou aquela função. Esta aptidão, esta peculiaridade deveria então tornar-se determinante para que as mais diversas atividades se desenvolvessem. Platão realça que cada um deve desenvolver-se naquilo que lhe é próprio, que se caracteriza como sua melhor habilidade. Imaginava nosso filósofo que cada um tivesse um profundo e sólido conhecimento de si próprio, de suas habilidades, de sua natureza e pendor? Ou para ele seria tão óbvio, já àquela época, que o autoconhecimento era inerente ao homem? Aborda ainda a primeira forma de educação e realça que é dada sob a forma de fábulas, pois o homem é bastante imperfeito para compreender de outro modo. Estas fábulas objetivavam inculcar conceitos como: Deus é bom, é imutável e não é a causa do mal. Destes pressupostos e princípios, foram, em sua cidade idealizada, surgindo todas as profissões que, juntamente com Glauco, Adimanto e Sócrates, entendiam como necessárias, importantes e desejáveis para que as gentes dali vivessem felizes pois estariam sob a proteção do manto da justiça. A certa altura, cidade desenhada, profissões estabelecidas, Sócrates pergunta a seus interlocutores: E onde encontraremos a justiça e a injustiça? De qual dos elementos que mencionamos julgas que elas se originam? [68]. Um traço forte da obra é a manutenção constante do fio condutor. Não há tergiversações nem divagações. A condução da obra é direta, objetiva e profunda. Reclama-nos fôlego em muitas e densas passagens para mergulharmos em propostas que põe e nos convida à reflexão. Ainda no livro segundo, delineia conceitos importantes: a pátria, a guerra e sua origem, o exército e sua formação, seu modo de seleção, a educação, abordando sua primeira forma e realçando que é dada sob o feitio de fábulas, pois o homem é bastante imperfeito para compreender de outro modo. Estas fábulas objetivavam inculcar conceitos como: Deus é bom, é imutável e não e a causa do mal: Deus não é a causa de tudo, mas somente do bem. [80] E ao discorrer sobre as características daquele que deverá ser o guardião da cidade relembra-nos nosso propósito, dele e do leitor:
Sócrates – Tal será, então o caráter do nosso guerreiro. Mas como educá-lo e instruí-lo? O exame desta questão pode ajudar-nos a descobrir o objeto de todas as nossas pesquisas, isto é, como surgem a justiça e a injustiça numa cidade. Precisamos sabê-lo, porque não queremos nem omitir um ponto importante nem perder-nos em divagações inúteis. [75] Discorre sobre o bem e o mal, sobre o processo de educação dos jovens e realça que o começo, em todas as coisas é sempre o mais importante. Ensina que o ser perfeito, em geral, tira a sua perfeição da natureza.
Sócrates – A propósito dos Deuses… [89] Assim começa o livro terceiro, no qual busca examinar os mitos relacionados à vida no além. A esta altura, Platão recheia sua obra de conceitos. Da necessidade de extinguir o terror que a morte possa provocar banindo os usos funerários que consideram a morte como um mal. Para o autor, os homens devem recear a escravidão mais que a morte. [90]. Aborda o caráter público da mentira e alega que, se no interesse da cidade, em virtude dos inimigos e dos cidadãos mentir pode até ser válido: se compete a mentir é aos líderes da cidade. [93]. Discorre sobre dar e receber presentes, sobre ter ambição, e sobre a maneira mais adequada de censurar os poetas para que não profiram disparates sobre os homens. Trata a melodia, subdividindo-a, enquanto composição em três elementos: as palavras, a harmonia e o ritmo. Realça a importância da pintura e da educação musical como a parte principal da educação porque o ritmo e a harmonia têm grande poder de penetrar na alma e tocá-la fortemente: louva as coisas belas, recebe-as alegremente no espírito, para fazer delas o seu alimento, e torna-se assim nobre e bom; ao contrário, censura justamente as coisas feias, odeia-as logo na infância antes de estar de posse da razão,… [110] Ainda como que querendo estabelecer todos os conceitos necessários para construir a sua cidade ideal, como se os conceitos fossem tijolos e ao mesmo tempo argamassa, ele continua a desfiá-los. Vai do conhecimento, do amor autêntico, da embriaguez, do regime alimentar, da ginástica até a morte, e a necessidade de evitá-la ou deixar que conduza para o Hades aqueles que, tendo um ofício, mas não tendo condições de exercê-lo, não terão também nenhuma vantagem em viver. Referindo-se a Esculápio afirma que fora para os homens com uma boa constituição, mas que sofrem de uma doença localizada que ele inventou a medicina libertou-os das doenças mediante remédios e indicações, ordenando-lhes ao mesmo tempo que não mudassem em nadas seu regime habitual, a fim de não prejudicarem os negócios da cidade. Quanto aos indivíduos inteiramente minados pela doença, não tentou prolongar-lhes a miserável vida por meio de um lento tratamento de infusões e purgas e pô-los em condições de engendrar filhos destinados, provavelmente, a parecerem-se com eles; não pensou que fosse necessário tratar um homem incapaz de viver no círculo de deveres que lhe é fixado, porque daí não é vantajoso nem para o doente nem para a cidade. [117] Ainda dialogando com Glauco, fala sobre o médico mais hábil, o bom juiz e exorta que um bom juiz não seja jovem, mas velho. Apresenta dois elementos, que segundo ele, existem na alma: a coragem e a sabedoria. Características necessárias para um grande líder capaz de salvar a constituição. E agora nos falta determinar a escolha dos cidadãos que devem mandar ou obedecer. Os velhos deverão mandar e os jovens obedecer. [123] Fala da necessidade de inteligência, autoridade e dedicação à coisa pública e da necessidade de escolher alguém que, com boa vontade sempre agirá em favor do Estado.
No livro quatro, Platão faz aprofundadas reflexões sobre a justiça e a injustiça. Esta temática toma conta deste volume. Sócrates afirma que seu deseja é um Estado feliz e que a virtude existe na organização política descrita. Observa ser perigoso que cada um queira e deseje acrescentar à sua condição uma outra situação para concluir que tanto a riqueza quanto a pobreza prejudicam a arte e os artesãos. O conflito entre ricos e pobres teria a capacidade de dividir ao meio a cidade ideal e criar duas cidades inimigas uma da outra. Retoma o conceito da necessidade da música para educar o jovem. Enfatiza o conceito de justiça individual e faz notar que a alma deve ser dividida em três partes: a cognitiva, a irascível e a apetitiva. Além destas três partes, destaca as quatro virtudes necessárias para a boa formação e administração de uma cidade perfeita: sabedoria, coragem, temperança (ou moderação) e justiça e sobre estas virtudes refere-se assim: Temos assim três virtudes que foram descobertas na nossa cidade: sabedoria, coragem e moderação para os chefes; coragem e moderação para os guardas; moderação para o povo. No que diz respeito à quarta, pela qual esta cidade também participa na virtude, que poderá ser? É evidente que é a Justiça. [150] A justiça e a injustiça. Em que consiste cada uma, quais as conseqüências, o que significa. Após aprofundar no seu diálogo estes conceitos propõe: Vamos transladar agora para o indivíduo o que encontramos na cidade e, se descobrirmos que a justiça é isso, tanto melhor. E, chega através de inúmeros obstáculos penosamente superados, a estabelecer que existam, na cidade e na alma do indivíduo, princípios correspondentes e iguais em número.
Sócrates – Então, amigo Glauco, afirmaremos que a justiça tem no indivíduo o mesmo caráter que na cidade. […] Lembremo-nos então de que, se cada um de nós desempenhar a sua própria tarefa, será também justo e desempenhará a tarefa que lhe é própria. [163]. Ao concluir este livro Platão diz que há cinco formas de governo e cinco espécies de alma.
A organização do Estado volta ao centro do diálogo, com ênfase na justiça emoldurada na sentença de que a justiça assegura a liberdade. Intenta demonstrar que o que é possível no plano teórico é também realizável no prático. Passa Sócrates então a demonstrar se pode dar uma constituição ao Estado. Esta se baseia no comunismo das relações sexuais, ou na comunhão das mulheres. Neste ponto do diálogo, há uma consideração que sua própria natureza deixa-nos, mundo civilizado, com uma sensação de profundo atraso com relação à discriminação entre os sexos. Afirma que muitas mulheres são superiores a muitos homens, em muitas atividades. [181] Realça-lhes uma maior disposição inata para a medicina ou para música, como observa que com relação à sabedoria há umas que a amam e outras que a odeiam. Admite que têm a mesma aptidão para a defesa de uma cidade e observa que a única diferença é que a mulher é mais fraca e o homem é mais forte, como admite que um homem pode ser melhor e outro pior, que não são iguais. Ensina que o útil é belo e que só o nocivo é vergonhoso. Discorre deste assunto antes de mostrar-nos que as mulheres dos nossos guerreiros pertencerão a todos: nenhuma delas habitará em particular com nenhum deles. Da mesma maneira, os filhos serão comuns e os pais não conhecerão seus filhos nem estes a seus pais. [184] Propugna uma raça pura para garantir a beleza e a utilidade da cidade. Trata-se de uma parte totalmente extemporânea, mas necessária enquanto viés de reflexão para que possamos contextualizar a obra em toda a sua dimensão e profundidade. Busca compreender qual é o maior bem para a cidade e demonstra como e por que a educação das crianças deve ser feita sob a responsabilidade comuns dos dois sexos.
É possível executar uma coisa tal como se descreve? Ou é próprio da natureza das coisas que a execução tenha menos influência sobre a verdade que o discurso [206]? Provoca Platão. Acredita e defende a possibilidade de se praticar o que propõe, porém estabelece uma condição: Enquanto os filósofos não forem reis nas cidades, ou aqueles que hoje denominamos reis e soberanos não forem verdadeira e seriamente filósofos, enquanto o poder político e a filosofia não convergirem num mesmo indivíduo, enquanto os muitos caracteres que atualmente perseguem um ou outro destes objetivos de modo exclusivo não forem impedidos de agir assim, não terão fim, meu caro Glauco, os males das cidades, nem, conforme julgo, os do gênero humano, e jamais a cidade que nós descrevemos será edificada. [207] Diremos que o filósofo deseja a sabedoria não em uma ou alguma das partes, mas em seu conjunto, em sua totalidade. Denomina filósofo apenas aqueles que em tudo se prendem à realidade [217]. Ainda digno de nota neste quinto livro, é a reflexão do que seja conhecimento e opinião. O conhecimento é o cerne e o propósito da ciência, posto que o objetivo da ciência seja conhecer o que é, exatamente tal como é, enquanto que o propósito da opinião é julgar pelas aparências. Para Platão, a opinião é algo intermediário entre a ciência e a ignorância e relaciona o ser à ciência e o não-ser à ignorância. Mostra-nos que o objetivo da opinião não é o ser nem o não-ser, opinião não é nem ciência nem ignorância. Sócrates conclui este livro: Afirmaremos, pois, que as pessoas que enxergam muitas coisas belas, mas não apreendem o próprio belo e não podem seguir aquele que gostaria de guiá-las nessa contemplação, que enxergam muitas coisas justas sem verem a própria justiça e assim por diante, essas pessoas, diremos nós, opinam sobre tudo, mas não sabem nada a respeito das coisas sobre as quis opinam.
O livro sexto amplia o conceito, o papel e a importância do que entende ser filósofo. No livro anterior afirmara que o Estado só é possível se os filósofos reinarem ou se os reis se tornarem filósofos. Inicia agora definindo mais fundamente: filósofos são aqueles que podem chegar ao conhecimento do imutável, ao passo que os que não podem, mas erram na multiplicidade dos objetos variáveis, não são filósofos, cumpre-nos ver a quem escolheríamos para governar o Estado. […] Em que diferem dos cegos os que não possuem o conhecimento da essência das coisas. [221] O filósofo é aquele que possui um espírito repleto de moderação e de graça, cujas tendências inatas guiarão para a essência de cada ser.
Com profunda capacidade e perspicácia ensina que os filósofos mais sábios são inúteis à maioria da sociedade, mas faz notar que essa inutilidade é devida aos que não empregam os sábios, e não aos próprios sábios. A mais grave acusação que fere a filosofia e contribui para perpetuação desta percepção sobre o filósofo vem daqueles que se dizem filósofo sem o ser. Almas incultas que se metem a filosofar produzem somente frivolidades e sofismas.
A formação de um filósofo, considerando que é impossível que o povo seja filósofo [234], é discorrida longamente ao ensinar como o Estado deve agir para que a filosofia não pereça: Afirmo, diz Sócrates, que os melhores magistrados devem ser os filósofos. [245] Achas justo que um homem fale do que ignora, como se o soubesse? Pergunta-nos.
Ah, a linguagem! Já tão longinquamente (há mais ou menos 2.400 anos) Platão a reconhecia e dava-lhe lugar de bandeirante para a compreensão dos povos e de suas formas de governo e de administração: declaramos que existem numerosas coisas belas, numerosas coisas boas, muitas coisas de outras espécies cuja existência afirmamos e distinguimos na linguagem. [251].
O que derrama a luz da verdade sobre os objetos do conhecimento e proporciona ao indivíduo o poder de conhecer é a idéia do bem. Compara o bem ao sol, à luz do sol: Aquilo que o bem é, no campo da inteligência em relação ao pensamento e aos seus objetos, o Sol o é no campo do visível, em relação à vista e aos seus objetos. [253] O diálogo final do livro sexto conduz-nos para o ápice da obra:
Glauco -… Queres estabelecer que o conhecimento do ser inteligível, que é adquirido pela ciência da dialética, é mais claro que aquele que é adquirido pelo que denominamos ciências, as quais possuem hipóteses como princípios. É certo que aqueles que se consagram às ciências são obrigados a utilizar o raciocínio, e não os sentidos. […] Sócrates – Compreendeste-me bastante bem. Aplica agora as quatro operações da alma: a inteligência, o conhecimento discursivo, a fé, e a imaginação. [257].
Imagina homens numa morada subterrânea, em forma de caverna… A alegoria da caverna, provavelmente o tema mais visitado desta obra, é a temática do sétimo livro. A alegoria demonstra os múltiplos obstáculos que o homem encontra na investigação da verdade e a necessidade de educar o filósofo enquanto aquele que nos conduzirá ao encontra da verdade. Aprofunda mais o conceito de educação: a arte que se propõe a conservação da alma, e que procura os meios mais fáceis e mais eficazes de o conseguir. Não consiste em dar visão ao órgão da alma, visto que já tem; mas, como ele está mal orientado e não olha para onde deveria, ela esforça-se por encaminhá-lo na boa direção. [266] A contradição conduzirá sua alma à essência. O que não desperta sensações opostas é incapaz de despertar o entendimento; por isso certos objetos convidam a alma à reflexão e outros não. Embrenha-se Sócrates então a buscar uma ciência que pudesse em sua totalidade forçar o espírito a servir-se da mais pura inteligência para alcançar a verdade pura. Perscrutou a Geometria, passou pela Astronomia até chegar à Dialética: O método dialético é o único que se eleva, destruindo as hipóteses, até o próprio princípio para estabelecer com solidez as suas conclusões, e que realmente afasta, pouco a pouco, o olhar da alma da lama grosseira em que está mergulhado e o eleva para a região superior, usando como auxiliares para esta conversão às artes que enumeramos.
Sócrates – Bastará, então, chamar ciência à primeira divisão, conhecimento discursivo à segunda, fé a terceira e imaginação à quarta; as duas últimas denominaremos opinião, e as duas primeiras, inteligência. A opinião terá por objetivo a mutabilidade, e a inteligência, a essência. [286].
Sem perder de vista o que ensina a Alegoria da Caverna e priorizando conceitos sobre educação e aprendizado, Platão fala com atualidade presente: o homem livre não deve ser obrigado a aprender como se fosse um escravo. Os exercícios físicos, quando praticados à força, não causam dano ao corpo, mas as lições que se fazem entrar à força na alma nela não permanecerão. [290] Discursando sobre o aprendizado arremata: o espírito que tem capacidade de síntese é dialético, os outros não o são. A dialética somente será iniciada depois dos trinta anos e a educação especial deverá começar somente depois de uma educação geral e só será dada a indivíduos escolhidos por meio de sucessivas eliminações.
O excesso de liberdade conduz a um excesso de servidão, tanto no indivíduo como no Estado. [326] Esta dicotomia é o âmago do oitavo livro. O que chamaríamos simplesmente de forma de governo hodiernamente, é descrito como um processo de construção de um modo de ser que se dá no Estado como processo conseqüente de vivências no plano individual. O que se dá na cidade, e conseqüentemente no Estado, é o mesmo e de modo semelhante àquilo que se dá com o indivíduo, por isso, ensina-nos Platão, a cidade será conseqüência do caráter que se introjetar, estabelecer e der sustentação ao indivíduo.
Platão propõe analisar os costumes do Estado antes de estudar os dos particulares. Alegando não ter outra designação a dar, chama ao primeiro modelo de governo de timocracia, ao segundo de oligarquia, ao terceiro denominou democracia e ao quarto, tirania. Entende que para cada um destes modelos, enquanto forma de atuação do Estado, há um modelo correspondente, enquanto comportamento, no indivíduo. Pode-se falar então do homem tirano, do homem democrático, do oligárquico e do “timocrático”.
Considerando que toda constituição se modifica de acordo com quem detém o poder, quando a discórdia grassa entre seus membros, pois tudo o que nasce é passível de corrupção, nenhum sistema de governo durará eternamente, mas dissolver-se-á. Cada vez que houver a transformação de um processo de governo para outro, este virá eivado de um processo degenerativo.
Se na timocracia prevalece a ambição, na oligarquia, governo que se segue ao anterior, o governo fundamenta-se no recenseamento, em que os ricos mandam e o pobre não participa do poder. Observa Platão que, quando os homens ricos são honrados numa cidade, a virtude e os homens virtuosos são tidos em menor estima. Como decorrência deste modelo, tal cidade não pode ser una, mas dupla: a dos pobres e a dos ricos, que vivem sobre o mesmo solo e conspiram sem cessar uns contra os outros. [309]. À Oligarquia segue-se a Democracia, sistema que, no entendimento de Platão, os chefes devem a sua autoridade aos grandes bens que possuem. Dessa forma, recusar-se-ão, suponho, a fazer uma lei para reprimir a libertinagem dos jovens e a dissipação de seu patrimônio, visto que têm a intenção de comprá-lo ou de o conseguirem pela usura, para se tornarem ainda mais ricos e poderosos. [314] Para Platão, num Estado os cidadãos não podem honrar a riqueza e ao mesmo tempo adquirir a temperança conveniente, mas são obrigados a renunciar a uma ou a outra. Para ele, a democracia surge quando os pobres, tendo vencido os ricos, eliminam uns, expulsam outros e dividem por igual com os que ficam o governo e os cargos públicos. E, devo dizer, na maior parte das vezes estes cargos são atribuídos por sorteio. [316]. Neste Estado, continua Platão [317] não há a obrigação de mandar se não se for capaz de tal, nem a obedecer se não quiser. Da Democracia decorre o quarto poder e a ele assim refere Platão: resta-nos estudar agora a mais bela forma de governo e o mais belo caráter: quero dizer, a tirania e o tirano. À página trezentos e vinte e quatro sentencia Sócrates: Quando um Estado democrático, sedento de liberdade, passa a ser dominado por maus chefes, que fazem com que ele se embriague com esse vinho puro para além de toda a decência, então, se os seus magistrados não se mostram inteiramente dóceis e não lhe concedem um alto grau de liberdade, ele castiga-os, acusando-os de serem criminosos e oligarcas. E ridiculariza os que obedecem aos magistrados e trata-os de homens servis e sem valor. […] Num Estado assim o espírito de liberdade se estende a tudo. Da interior das famílias a anarquia se transmite até os próprios animais.
Adimanto – O que queres dizer?
Sócrates – Que o pai se habitua a tratar o filho como seu igual e a temer os filhos dele. Que o filho se assemelha ao pai e não respeita nem teme os pais, porque quer ser livre. Que o meteco se torna igual ao cidadão, o cidadão ao meteco e do mesmo modo todo estrangeiro.
Adimanto – Na verdade, é assim.
Sócrates – aqui tens o que acontece e outros pequenos abusos como estes. O mestre receia os discípulos e lisonjeia-os, os discípulos fazem pouco caso dos mestres e dos pedagogos. De modo geral, os jovens imitam os mais velhos e disputam com eles em palavras e ações. Os idosos, por seu lado, sujeitam-se às maneiras dos jovens e mostram-se cheios de gentileza e petulância, imitando a juventude, com medo de serem considerados enfadonhos e despóticos.
Adimanto – É assim, realmente.
Sócrates – Mas, meu caro, o limite extremo do excesso de liberdade que tal Estado oferece é atingido quando as pessoas dos dois sexos que se compram como escravos não são menos livres do que aqueles que as compraram. [325].
E este livro oitavo fecha-se: Então, chegamos ao que se costuma chamar de tirania. O povo, de acordo com o ditado, evitando a fumaça da submissão a homens livres, caiu no fogo do despotismo dos escravos e, em troca de uma liberdade excessiva e inoportuna, vestiu a farda mais dura e mais amarga das servidões. [334] Ao livro nove. Neste livro é descrito a degeneração do indivíduo, a degenerescência dos caracteres humanos enquanto correspondentes da forma de degeneração do Estado.
No livro dez, Platão fala de uma alma imortal, realçando o fato de ser a injustiça uma das moléstias que mais atingem a sua vitalidade. Reconhece um Deus como criador e retoma a questão da imitação artística: representar o que é tal como e ou o que parece tal como parece é a imitação da aparência. [373] Sócrates – A lei diz que não há nada mais belo do que manter a calma, tanto quanto possível, na infelicidade, e não se afligir, porque não se pode distinguir com clareza o bem do mal que ela comporta; não se ganha nada em indignar-se, nenhuma das coisas humanas merece ser tomada muito a sério, e, numa ocasião dessas, agindo com destempero, seria impossível ver o que estaria vindo em nosso socorro, porque nosso desgosto nos impediria. [382] Sócrates exorta Glauco sobre o grande combate que cada um deve combater cotidianamente, maior do que se pensa, aquele em que se trata de nos tornarmos bons ou maus; por isso, nem glória, nem as riquezas, nem a dignidade, nem mesmo a poesia, merecem que nos deixemos resvalar para o desprezo da justiça e das outras virtudes. [387] Para Platão o que destrói e corrompe as coisas é o mal; o que as conserva e desenvolve é o bem. Os vícios tornam má a alma: a injustiça, a intemperança, a covardia, a ignorância.
Platão admite a imortalidade da alma: temos de admitir, então que, quando um homem justo está exposto à pobreza, à doença ou a qualquer outro destes pretensos males, isso acabará por ser-lhe proveitoso, durante a vida ou depois da morte, pois os Deuses não podem desprezar alguém que se esforça por ser justo e tornar-se, tanto quanto é possível ao homem, pela prática da virtude, semelhante a ela. [393] A República termina com o mito ou a história de Er em que, depois de uma sábia alegoria astronômica, é exposto o sistema de transmigração das almas, que se dá depois de vários milhares de anos, depois de cada existência ter sido recompensada ou punida com uma morada da alma no céu ou no inferno. Aos justos é reservada uma entrada à direita, que sobe até o céu. Aos maus, a entrada à esquerda, por uma escada descendente.

Ler Platão, em a República, aproximadamente dois mil e quatrocentos anos após ele ter-se debruçado em profunda reflexão sobre as condições da formação e do modo de se organizar enquanto sociedade, para dar forma ao que chamou de governo, ou de Estado, é indiscutivelmente tomar a entrada da direita, aquela que ascende. De mal em realizar tal percurso, é a constatação de que, apesar da aparência de progresso e evolução caminhamos desenfreadamente pela entrada da esquerda, rumo ao mais intenso dos infernos. A sensação que fica, após o término da República, é que de evolução mesmo pouco se tem o que falar. Como estamos parecidos com aquilo que descrevera Platão há tanto tempo!

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NOTAS
1) Platão nasceu em Atenas ou em Egina, aos sete dias do mês de tergelion (maio) de 427 a.C. Faleceu em 348/347, aos 80 anos de idade. Era filho de Aríston cuja genealogia remontava a Codro e de Perictioné que, por sua vez descendia de um irmão de Sólon. O nome Platão, que lhe deu celebridade, é um apelido que lhe adveio do fato de possuir ombros largos. Seus pais lhe haviam dado o nome de Arístocles.
Platão teve dois irmãos mais velhos, Adimanto e Gláucon e uma irmã, Potone, que foi mãe de seu discípulo e sucessor, Speusipo.
Quando do processo de Sócrates em 399, quando este foi condenado a morrer bebendo cicuta, quis ele e mais alguns companheiros apresentar-se como fiador do mestre. Após a morte do mestre, retirou-se Platão para Mégara com outros socráticos e ali conheceu Euclides.

2) Simônides de Ceos (556 – 469 a.C.), poeta lírico grego, famoso por suas elegias, odes e epigramas.

3) O número entre colchetes se refere ao número da página onde se encontra a referida citação

4) Meteco : Designação que se dava ao estrangeiro domiciliado em Atenas, Aurélio

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