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“ … PENSAR É A PRIMEIRA NECESSIDADE; A VERDADE ALIMENTA TANTO QUANTO PÃO .”

 

foto Gilberto Rodrigues

Resenha

A OBRA

HUGO, Victor. Os Miseráveis

2 vol. – 1.276 p.
Tradução e Notas: Frederico Ozanam Pessoa de Barros
Apresentação: Renato Janine Ribeiro
Edição conjunta: Cosac & Naify, 2002, SP
Casa da Palavra , 2002, RJ
 
Emocionado, partilho com Marius e Cosette a morte de Jean Valjean. Os olhos marejam pela beleza e pelo vazio da obra finda, por não ter mais, amanhã, Os Miseráveis à mão. Queria tanto terminá-lo e agora o quero, tanto, interminável. Pena que, como na vida, tudo chega ao seu termo. Acabou. Haverá outra obra como essa? Jamais. Tomarei outra, com outros encantos, outras emoções, outras angústias. Ao vogar pelos Miseráveis sinto-me como Jean Valjean quando, para se redimir perante si mesmo e seus entes queridos, que nem eram “seus”, atravessou os esgotos de uma Paris fétida em suas entranhas e banhada em sangue fraterno de uma revolução miserável, cheia de medos e sonhos de liberdade, em sua superfície. Como ele, saio redimido. Passei pelos Miseráveis – torno-me um pouco menos miserável – algo novo dá-se em minh’alma.

          Leva-nos obra afora, a indiscriminação que ela apresenta entre a realidade e a ficção. Linha a linha, palavra a palavra. Conduz-nos, esperançosos ou revoltados, pelos emaranhados de tantas páginas, como prisioneiros perpetuamente condenados, pois peia-nos a atenção com emoções encordoadas, o perigoso e inofensivo Jean Valjean juntamente com todos que constelam por seu percurso, direta ou indiretamente. Ah! Creiam, são percursos que caminham como nossas próprias vidas. São cheios de encontros, desencontros, acertos, perdas, certezas, indecisões, indefinições. A ficção mesclada à história vai sulcando no leitor as marcas que deixam na alma da gente uma grande obra literária. Jean Valjean  é aquele herói anônimo, cidadão comum, ser humano como todos nós. E, como todos nós um dia, também transgrediu. Roubara, numa noite silenciosa de uma janela descuidada, um pão para saciar sua fome miserável. A sociedade, zelosa de si mesma, muitas vezes até  mais do que com as pessoas que a constituem, apodera-se dele, julga-o e o condena. Além de pagar, sobejamente a sua pena, dezenove anos como grilheta nas galés, e de regenerar-se na alma, no espírito e nas intenções, de novo a sua sociedade, raivosa e desumana, o persegue feito a uma besta-fera pela transgressão da sua condicional. Alertem-se! Que tanta periculosidade há em quem rouba para saciar a fome!? Há miséria maior que essa? É uma  perseguição em nome da lei e da legalidade, mesmo contrariando a consciência que, como se autônoma, insistia em iluminar o discernimento do perseguidor legal. É importante que vejamos como o representante da ordem e da justiça, perseguindo em nome da lei e pela lei, se desenredou de seus conflitos. A justiça não escapa, também, de suas nuanças prenhes de atrocidades indecifráveis.

          Javert, inspetor de primeira classe da polícia de Paris, em 7 de junho de 1832 não suporta o confronto que lhe desencadeou o conflito que o deixou agonizante diante da escolha entre a própria consciência e as vozes do dever. Ao deparar-se com a presença, humanizada, de Jean Valjean que inclusive lhe poupara a vida quando poderia tê-la ceifado, vê descortinar, de modo incontornável algumas obviedades de descomunais incômodos. “Convencia-se de que então era verdade, que havia exceções, que a autoridade podia ser confundida, que a regra podia ser insuficiente diante de um fato, que nem tudo se enquadrava  no texto do código, que o imprevisto exigia obediência, que a virtude de um grilheta poderia armar laços à virtude de um funcionário, que o monstruoso podia ser divino, que o destino armava emboscadas, e pensava com desespero que ele próprio não estivera ao abrigo de uma surpresa.

          Via-se obrigado a reconhecer a existência da bondade. Aquele grilheta tinha sido bom. Ele mesmo, coisa inaudita, praticara um ato de bondade. Portanto, depravara-se. Sentia-se covarde. Sentia horror de si mesmo.

          O ideal para Javert não consistia em ser humano, em ser grande, em ser sublime; consistia em ser irrepreensível. Mas acabava de falhar.[1]

Então  quase paralisado, pois havia sido adestrado para a cega obediência ao dever, a norma, ao código, à lei, constata: “Existe então alguma coisa acima do dever.[2] Nada poderia desconcertar, desestruturar tanto aquele homem que sempre viveu pela lei e pela justiça quanto “ver-se obrigado a confessar isto: a infalibilidade não é infalível, o dogma pode conter erros, o código não é completo, a sociedade não é perfeita, a autoridade pode vacilar, um desacordo no imutável é possível, os juízes são homens, a lei pode enganar-se, os tribunais podem errar!”[3]  Javert constata, atônito, a falibilidade da lei. Da justiça dos homens. Lembremo-nos de que só lhe importava “ser irrepreensível”. Ser humano pouco se lhe importava. Porque de um lado estava sua consciência e do outro o dever e, não conseguindo colher o fruto que às vezes o bom senso germina em nossas almas e, ainda mais, temendo deixar de ser irrepreensível, não suporta a impotência de não lidar com estes fenômenos humanos comuns a todos nós, como a dúvida, a angústia, a incerteza, entrega-se a um gesto de coragem. Ou de covardia? Deixo-lhes livres, para ajuizarem e darem a sentença. Após esta longa e negra madrugada de 7 de junho, o representante, até agora irrepreensível, da lei, ignorado pela sociedade, pois era muito eficiente, que só sabia que podia jamais sacrificar, por motivos pessoais, as ordens do dever, vagueia à brisa do Sena. Victor Hugo nos instiga a observá-lo: “Javert ficou  imóvel por alguns instantes, olhando aquela abertura de trevas; contemplava o invisível com uma  fixidez que se assemelhava à atenção. A água rumorejava. De repente, tirou o chapéu e o colocou  sobre o parapeito, – situado por cima das corredeiras do Sena. Um momento depois, uma silhueta alta e escura, que de longe algum transeunte notívago poderia tomar por um fantasma, apareceu de pé sobre o parapeito, curvou-se para o Sena, tornou a erguer-se e caiu pesadamente nas trevas; seguiu-se um rumor surdo, e somente a sombra soube o segredo das convulsões daquela forma obscura que desaparecia no seio das águas.”[4] Ao terminar, atônito, este parágrafo, longe de esboçar sequer um ensaio de  julgamento à sanidade de Javert anotei no pé da página: quem deverá ser responsabilizado pela morte de Javert? Quem será declarado culpado pela morte de tão brilhante defensor da ordem e da lei?  

O conteúdo da lei ,  aquele cerne que expressa a vontade do povo, escrito por seus representantes, por muitas e estranhas vezes, quando é transgredido em correção  e integridade, não importando as intenções, torna-se mais cruel e perverso que os crimes que busca corrigir ou mesmo extirpar do seu meio. Esta sociedade legal, investindo um representante com poderes plenos, desde que não lhes crie problemas, caçara  Jean Valjean com ódio obstinado. Essa perseguição emoldurada de forma brilhante pela descrição do conflito de Jean Valjean entre persistir na busca da integridade  ou deixar-se levar pelos instintos primários que alicerçam a sobrevivência das espécies, é um dos pilares desta obra.

Em outra vertente, Victor Hugo retrata através de cada um dos seus personagens como os desencontros são, em umas vezes, nada mais que encontros intensos e vitais e como, noutras vezes, os encontros deixam-nos diante de valas incomensuráveis de desencontros doloridos e, quase sempre, sem volta. O  percurso da vida da menina Cosette, mulher desde pequena e criança mesmo adulta, em busca de si própria, mesmo sem o saber, e de um grande amor, mesmo sem saber da possível correspondência, ilustra essa constatação. Há ainda outros dois pilares significativos. Um são os conceitos e pontos de vista sobre assuntos do nosso cotidiano com um enfoque peculiar. Entre tantos, também de significativa importância, há abordagens expressivas sobre a Oração[5], a Bondade[6], a Fé e a Lei[7] o Direito[8], os Jardins e os Jardineiros[9], o Trabalho[10], sobre a Revolta[11], sobre a Liberdade, Igualdade e Fraternidade[12], e o Progresso[13].

O segundo, porém não menos importante,  é o palco onde Victor Hugo enreda-nos por seus devaneios recheados de genialidade: episódios históricos e preciosos da Revolução Francesa.  História e Ficção, como em nossas vidas, tecem, com ou sem o nosso consentimento, o enredo da nossa existência. O individual construindo o coletivo, ou vice-versa. Certeza haverá jamais sobre qual intervém mais, sobre qual se dá em primeiro plano e se há interferência a favor ou contra algum processo da evolução humana na ordem dessas coisas. O acaso prevalece, sempre e irremediavelmente, ao responder de forma invariável e com precisão às demandas da necessidade. 

Esta é uma obra a qual todos que buscam um pouco de compreensão da alma humana, que ousam mirar a própria alma, deveriam  desbravar. Ninguém  melhor que o próprio Victor Hugo para nos contar o que trata em Os Miseráveis.

” O livro que o leitor tem sob os olhos neste momento é, do princípio ao fim, no seu conjunto e nos seus pormenores, sejam quais forem as intermitências , as exceções ou os desfalecimentos, a marcha do mal para o bem, do injusto para o justo, do falso para o verdadeiro, da noite para o dia, do apetite para a consciência, da podridão para a vida, da bestialidade para o dever, do inferno para o céu, do nada para Deus. Ponto de partida: a matéria; ponto de chegada: a alma. Hidra no princípio, anjo no fim”.[14]  

Aqueles que se deleitam com um bom romance, com uma obra densa, profunda, com um conteúdo de ordem universal e muito bem escrito, devem ler Os Miseráveis;

Aqueles que buscam aprofundar os seus conhecimentos sobre os mistérios que norteiam a alma humana, como os poetas, os psicólogos, os filósofos, devem ler Os Miseráveis;

Aqueles que se embrenham pelas searas do Direito, sonhando com a Justiça que redime e liberta os povos, que busca ver o ser humano de forma integrada a própria sociedade e vice-versa, e que sonha enaltecer mais a pessoa que a letra fria da lei, devem ler Os Miseráveis;

Aqueles que buscam uma compreensão mais profunda de como se dá a interação do ser humano convivendo em sua coletividade, construindo-a, transformando-a, humanizando-a, como os sociólogos, os antropólogos, os políticos, devem ler Os Miseráveis;

Aqueles que crêem que a miséria pode ser muito mais cruel e indigna para o ser humano do que a miséria decorrente da falta de pão, de moradia, de trabalho, de uma família que possa chamar de sua, ou de uma pátria onde possa se emocionar ao ouvir seu hino, devem ler Os Miseráveis;

Aqueles que ainda ficam indignados com a miséria que brota dos impedimentos do exercício da plena liberdade de expressão do pensamento, da falta de dignidade e respeito humanos, da falta de ética nas relações entre as pessoas e que ainda ficam profundamente revoltados com o autoritarismo, com os desmandos na administração da coisa pública, com a hipocrisia política, devem ler Os Miseráveis;

Aqueles que ainda acalentam no âmago de suas almas um sonho de liberdade para que TODOS sobre a terra possam um dia ter nas mãos a possibilidade de escolher os próprios caminhos, devem ler Os Miseráveis;

Aqueles que ainda sonham, fazem canções, poemas, crêem, duvidam, cismam, questionam, perguntam, amam, … devem ler Os Miseráveis;

Que esta obra, como outras tantas deste quilate, nos ajude a redimir e orientar os miseráveis do século XXI que estão, com sua desmedida desumanidade e podridão de caráter à frente de instituições públicas, como hospitais, escolas, governos, …, contaminando outra parte da humanidade que só busca a dignidade da vida, que, além da fome, quer extirpar do nosso seio outros tipos de miséria, mais desastrosa e mais abominável. Aliás com a extinção desse tipo de miséria e dos seus criadores miseráveis, não haveria mais fome, nem guerra, nem solidão. O amor voltaria, sem medos, a campear corações entre nós!

Devem ler Os Miseráveis de Victor Hugo até para descobrir que os nossos miseráveis não inspirariam romances nem qualquer outra literatura que nos propicie reflexão e deleite, pois não têm bandeira, filosofia, propósitos nobres, ética, nem dignidade. Os nossos miseráveis só nos causam indignação, asco e repugnância.

Arme-se, portanto, e embrenhe-se  por estas páginas. Volte ao tempo, visite a França que embalava o berço de tantos direitos que foram ali amalgamados, amamentados e acalentados quando este romance se construía nas mãos e no coração de Victor Hugo. Aproveite e visite também os seus esgotos … “o esgoto é a consciência da cidade. Tudo converge para ali e nele se confronta”.[15]  Você já refletiu sobre o esgoto? Victor Hugo ousou. Ousemos refletir sobre suas considerações: ” O esgoto é um cínico. Ele diz tudo. Essa sinceridade da imundície agrada-nos e nos repousa a alma. Quando passamos o tempo sofrendo na terra o espetáculo da pose que adotam a razão de Estado, o juramento, a sabedoria política, a justiça humana, a probidade profissional, a austeridade da situação, as togas incorruptíveis, consola-nos entrar num esgoto para ver o lodo correspondente”.[16]   Arme-se. Sugiro, armar para trilhar Os Miseráveis carece de bula para que não nos percamos ao incorrermos no lugar comum das interpretações do verbo ou daquelas que nos sugerem os dicionários. Armar para embrenhar pelos Miseráveis significa, exatamente, desarmar-se. Desvestir-se de seus conceitos pré-concebidos, de suas crenças, de seus valores, de suas intenções políticas, de seus votos religiosos e das tantas missas encomendadas para a remissão do passado. Desnudo e desarmado entregue-se e, boa sorte, comece. Ao terminar, ao sair da obra, desvestido, verá que muitas coisas  já não lhe servirão, outras porém lhe calçarão muito mais confortavelmente, e outras lhe causarão profunda estranheza: por que leva nos alforjes tamanha monstruosidade ou tanta insignificância?

Lamentavelmente, após quase um século e meio, o prefácio de Victor Hugo para esta obra denuncia que muitos projetos desde lá ainda não deixaram de ser tão somente intenções, se tanto. Atual e visceralmente instigante. Necessário aos que, apesar das seduções contemporâneas, insistem  em não se acovardar perante a vida, o povo, a Pátria.  Triste prefácio  que, lamentavelmente, perdura absolutamente inalterado aos olhos de quem ousa ver e aos corações de tantos povos, ainda Miseráveis. Vejamo-lo: Enquanto, por efeito de leis e costumes, houver proscrição social, forçando a existência, em plena civilização, de verdadeiros infernos, e desvirtuando, por humana fatalidade, um destino por natureza divino; enquanto os três problemas do século – a degradação do homem pelo proletariado, a prostituição da mulher pela fome, e a atrofia da criança pela ignorância – não forem resolvidos; enquanto houver lugares onde seja possível a asfixia social; em outras palavras, e de um ponto de vista mais amplo ainda, enquanto sobre a terra houver ignorância e miséria, livros como este não serão inúteis. Hauteville-House,  1862.”[17]

Esta obra é constituída a partir de cinco partes distintas, das quais o título realça a força dos seus personagens. Primeira parte: Fantine; segunda: Cosette; terceira: Marius; quarta: O idílio da rua Plumet e a Epopéia da rua Saint-Denis e, a quinta parte: Jean Valjean. Cada parte, exceto a quarta, que é constituída de 15 livros, é composta de oito livros cada. Cada um desses livros aprofunda outros personagens, contextualiza suas inter-relações e constrói o perfil psicológico de cada personagem e da obra. A trama, o “modus” como vão se emaranhando as relações ou de como vão se desenrolando, compõe, com a excepcional cultura e capacidade de bem escrever do autor , além da riqueza de detalhes e profundo conteúdo histórico, o acabamento de Os Miseráveis.

É mister ainda realçar a configuração desta edição. Primorosa. Dois volumes bonitos, bem acabados, digna  de emoldurar tamanha obra. Além disso, contém 816 notas, preciosíssimas para nortear o leitor mais curioso e, muitas vezes, contextualizá-lo.

Nas páginas 767 e 768, o leitor encontrará ainda, para seu deleite, a cronologia de Os Miseráveis.

 Somente após olharmos para a miséria de nossas almas, com ou sem os nossos medos, poderemos dar os primeiros passos para a construção de um mundo melhor, menos miserável. Depende de cada um e de todos nós.



[1] p. 652, v. II

[2] p. 653, v. II

[3] p. 654, v. II

[4] p. 658, v. II

[5] p. 462, v.I

[6] p. 463, v.I

[7] p. 465, v.I

[8] p. 235, v. II

[9] p. 285, v. II

[10] p. 362, v. II

[11] p. 421, v. II

[12] p. 545, v. II

[13] p. 582, v. II

[14] p. 587, v. II

[15] p. 603, v. II

[16] p. 604, v. II

[17] p. 20, v.I

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