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O Pianista

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Crônica

As luzes ainda não haviam sido todas acesas. O silêncio perambulava por entre as poltronas a espera de quem viesse lhe acompanhar, quebrar-lhe, para seu regozijo enaltecer-lhe os predicados, deslumbrar as sonoridades da melodia. O silêncio seria tão reverenciado quanto à canção e ele, o silêncio, sabia disso. As portas ainda fechadas faziam crescer o burburinho daqueles que esperavam calma e civilizadamente para ocuparem os seus lugares.

As pessoas vão entrando e num chegar de reverência ocupam, uma a uma, seus assentos. E esperam. Buscam posições pelas razões aparentemente incompreensíveis para um observador, mas todos escolhem seus lugares segundo razões que lhe são próprias. Uns porque querem poder ver as mãos. Outros a face que vaga e divaga no desenvolvimento da sinfonia. Outros preferem ficar quase que de costas para observarem as expressões da platéia. Outros nem se preocupam, porque iniciado o concerto, fecham os olhos, soltam as asas da imaginação, rega-as com emoção e deixam-se ir. Outros querem ficar mais pertos, outros mais longe, outros, tanto faz. Basta poderem estar ali. Cada qual com sua razão para estar e escolher este ou aquele lugar ocupam seus assentos e esperam. Murmuram. De repente, os aplausos. Educados. Aquelas palmas têm o tempo do percurso do caminho ao piano. Silêncio. Silêncio que convida. Instiga. De espera. Silêncio que continua embora agora recheado por notas, tons, intervalos, frases, tempos, pausas, enfim, acolhendo e aconchegando em seu colo a melodia que vai se soltando, vai ficando à vontade e realizando seu destino naquele dia.

Quanto tempo, quantos séculos precisou para embrenhar-se alma adentro dos mistérios e dos segredos do compositor para agora, sem partitura alguma trazer tanta emoção, histórias, enredos, a esta sinfonia? Ele não toca o que escreveu o criador. Toca o que tocou à criatura. E o auditório ouve a realidade de cada qual ali, naquele instante. Aí está a magia de um concerto e nesse instante ele faz-se mágico. E ele continua. Suas expressões às vezes sugerem cuidados especiais, pois parece que a qualquer momento flutuará e suas mãos ficarão sem o alcance do piano. Mas não, ela vaga, divaga mundos que não conhecemos sem jamais afastar-se um milímetro sequer da nota necessária para a construção daquela frase. Ele toca para ele, não para a platéia. A platéia ali é apenas um motivo para, em gala e pompa, tocar mais uma vez para suas fantasias e suas emoções. E o silêncio em harmonia com cada nota, com cada barulho que faz a respiração do auditório concerta uma sinfonia. Única. Se qualquer detalhe for alterado, alguém sair do recinto altera-se a sinfonia.

E ele toca. As suas mãos são de uma leveza tal que parecem ora irão alçar vôo, ora não conseguirão força e tenacidade necessárias para tocar a nota como deveria. Mas não. Ele vai com toda aquela leveza construindo dramas, romances, tragédias, desenhando amores em desencontro, recontando reencontros que em dores se renderam ao clamor da melodia. E a sinfonia caminha. E a platéia não está mais ali onde se encontram seus corpos. Viaja cada um sua viagem. E ele viaja também a sua. Aquele espaço fora retirado, a cada nota tocada, do meio da cidade e agora flutua e dança altos céus afora ao ritmo de seus dedos e a magia da sua interpretação.

Ah, e o tempo. Inexplicavelmente Cronos (deus que ordena o tempo) enciumado talvez, arranja o tempo de modo diferente do tempo cotidiano e sessenta minutos parecem apenas dez. Fora mesmo Cronos quem interferiu ou fora a sinfonia que alterou sensações e percepções e fez com que nem fosse percebido o passar das horas e a que ritmo bailava o tempo? Cronos não ousaria tamanha crueldade.  De fato não fora ele quem interferiu. Foi o esplendor da sinfonia que alterou as percepções e dimensões das sensações.

Aplausos veementes. Efusivos. Ele levanta-se, arranja o fraque, e em reverência àquela platéia que o reverenciava inclina-se: obrigado. E a platéia, em êxtase, pousando de seus vôos vai se levantando, um a um, e de pé, em aplausos incessantes, manifesta, também em reverência, seu  encantamento: obrigado, dizemos nós. Ele retira-se. Os aplausos melodiosos continuam… Para júbilo do auditório ele retorna, toma de sua  banqueta, ajeita a manga do fraque e agora espera que todos se arranjem novamente em seus lugares. Espera de novo o silêncio para que ele num acorde o irrompa com uma nova sinfonia. Suas mãos passeiam por sobre as teclas brancas e pretas na construção de uma nova e extasiante divagação por entre os sonhos e realidades de cada um que está ali, agora, a viajar com ele. E ele, notável, uma nota, duas notas, acordes, mais acordes… Enleva-se em nosso enlevo, e nós, no dele. A melodia perpassa os espaços que o silêncio e os corpos deixam no salão. O piano…

 Taubaté, 15 de novembro de 2011

4 Responses to “O Pianista”

By Jota - 15 novembro 2011 Responder

Parabéns, muito bom o texto!

By Maura Lídia - 16 novembro 2011 Responder

Nossa! Me senti em um concerto… Cheguei, escolhi o meu lugar, bem em frente ao pianista, gosto de observar o passeio das mãos sobre as teclas. Me lembrei do maestro João Carlos Martins. Excelente texto!

By Felipe Vollkopf - 22 julho 2014 Responder

Amigo, meus sinceros parabéns. A crônica é maravilhosa e, como pianista, me senti ao mesmo tempo tocado e lisonjeado. Contudo, preciso te dizer uma coisa: você deveria trocar por ”sonata”, nos lugares onde escreveu sinfonia. É que sinfonia é uma forma musical estritamente para orquestra, sem piano. Uma sonata é o ”equivalente” da sinfonia, só que para piano. Desculpa se pareceu chato e tudo o mais, mas é que com essa pequena e mínima correção, seu texto irá de ótimo para perfeito. Estando correto nesse aspecto, os pianistas que lerem se identificarão ainda mais. Parabéns!

By Felipe Vollkopf - 22 julho 2014 Responder

”Sinfonia é uma palavra de origem italiana e tem conotações que vão além do seu significado mais divulgado e conhecido, consolidado a partir do classicismo e que se refere a uma peça para orquestra construída na forma-sonata.”

Aqui está uma pequena explicação do que é uma sinfonia! Parabéns mais uma vez para o texto.

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