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Sobre a Mentira

foto Gilberto Rodrigues

Tarefa árdua a de construir uma reflexão sobre este tema. Embora presente em nossas vidas desde a mais tenra idade quando, crianças ainda, somos alertados para não mentir pois é feio, é pecado, papai e mamãe ficam tristes, as pessoas não gostam, deus castiga, a mentira ou a tentativa de sua evitação é algo que entremeia as relações humanas o tempo inteiro. Seja a mentira que pronunciamos, seja a mentira que somos.

É importante distinguirmos estas duas formas de mentira. Uma, a mentira que pronunciamos quando, de posse de uma verdade, a ocultamos. Outra, a mentira que temos que nos tornar para nos adequarmos as demandas que nos impõe o mundo civilizado, o mundo das relações humanas. A nossa sociedade.

No primeiro caso a essência da mentira está no fato de que o mentiroso esteja consciente da verdade, que saiba qual é a verdade que esconde ou deseja esconder. Não se mente sobre o que se ignora. Pouco importam as razões ou os objetivos pelos quais se mente. Pode ser para se defender, para ludibriar, para tirar algum proveito. Em qualquer destes casos é necessário, para que se caracterize um ato de mentira, que o mentiroso saiba sobre a verdade que está escondendo. Não se caracteriza como mentira o que é dito a partir do desconhecimento ou da incerteza. O mentiroso, ao mentir tem uma disposição íntima para querer esconder a verdade do seu interlocutor. A mentira pressupõe, sempre, a presença do Outro. Presume a existência do Outro para mim e de mim para o Outro. Isto significa que ao mentir há uma intenção, um propósito. Um objetivo. Não há mentiras por descuido. Não falamos aqui do mentir para si mesmo, do auto-enganar-se, pois esta é uma questão de outra ordem e que poderá ser objeto de reflexão em uma outra oportunidade.

No segundo caso, um pouco mais complexo – sobre a mentira que somos – é necessário que compreendamos que não somos possuidores, portadores, de uma identidade, mas que, desde quando nascemos temos que ir nos identificando com o Outro, com os outros que estão ao nosso redor quando iniciamos nosso percurso na vida. Nascemos em uma sociedade já constituída, com um modo próprio de estabelecer as suas relações, ou seja, em uma cultura estabelecida, determinada há muitos séculos e ao nascermos, para a nosso sobrevivência física e psíquica, precisamos nos adequar a esta sociedade. Esta adequação se dá a partir das identificações que vamos realizando enquanto inseridos nas estruturas da família, da escola, das instituições religiosas, e de outros grupamentos constituídos e aceitos socialmente e nesta adequação vamos perdendo algo que é nosso, que  é próprio, ou seja, uma completude original. Abdicamos desta para nos tornarmos um sujeito a partir das identificações que vamos realizando no nosso processo de estruturação psíquica. Criamos uma imagem de quem somos, mas quem de fato somos não sabemos pois tivemos que abdicar da nossa totalidade individual para realizarmos as identificações que pudessem nos fazer aceitos para então, sermos inseridos no contexto de mundo já estruturado, já estabelecido. Então, quem somos nós? Somos de fato quem pensamos ser? Ou o que achamos que somos, é uma mentira pois ao realizarmos desde o nosso nascimento nossas primeiras identificações vamos perdendo nossa identidade original para garantirmos uma melhor adequação a este mundo já estabelecido, já estruturado. Não temos consciência destas identificações que fazemos, nem do modo como as fazemos, como não conseguimos saber com o que ou com quem fomos nos identificando. Porém é importante estarmos atentos para o fato de que se para nos adequarmos, ao irmos realizando nossas identificações, abdicamos em demasia de nós mesmos, mais do que uma mentira deixamos simplesmente de Ser. Morremos enquanto sujeito, enquanto indivíduo, enquanto pessoa com um conjunto de identificações que nos caracteriza. E é este conjunto de identificações o que nos individualiza, que nos possibilita um nome, um lugar único nesta sociedade organizada dos seres humanos. Embora individualidades, não temos uma identidade até porque esta vai sendo alterada ao longo do percurso da vida que vamos construindo no nosso dia-a-dia. Então, o que somos? Quem somos? Somos mesmo uma mentira?

Considerando pertinentes estas observações de que mentimos para esconder a verdade, ou que nos escondemos enquanto verdade para podermos nos adequar a esta sociedade estruturada torna-se necessário e urgente refletirmos sobre, se mentimos, ao mentirmos, o que estamos de fato buscando. Será que a mentira pode ser uma forma de busca para a adequação, para a aceitação? Cabe-nos ainda perguntar o quanto devemos continuar nesta busca incessante de identificação para que sejamos aceitos. Parece-me que o caminho para quebrarmos esta busca constante e interminável de adequação é olharmos para as questões que mais nos incomodam enquanto quem tem que estar o tempo todo adequado. Quebrar este processo é buscar o autoconhecimento.

A mentira pode ser uma aliada enquanto reveladora das nossas verdades. Se no primeiro caso mentimos pra esconder, sabemos da verdade ocultada. Podemos então nos perguntar por que a mentira pode ser mais produtiva, mais eficaz que a verdade. Esta pergunta talvez já nos encaminhe para relações mais verdadeiras. No segundo caso, se para sermos aceitos temos que perder parte da nossa individualidade, a saída talvez seja repensarmos o que queremos ser e se precisamos continuar indefinidamente na busca pela identificação para garantir que, por sermos bem adequados, nossa sobrevivência será mais feliz.

Ambas as respostas passam pelo caminho da busca pelo autoconhecimento. É um caminho tão árduo quanto o do exercício da verdade

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