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O Jardineiro

Crônica 

foto Gilberto Rodrigues

Os pássaros arrulham sob a janela e o sol, sonolento ainda, deixa seus raios escapulirem por entre as brumas de orvalho da madrugada. Fria. Enevoada. Um cheiro de café fresco exala casa afora e a brisa fria da manhã busca aconchego na quentura da casa entrando sorrateira pela porta entreaberta. Ele vem espreguiçando, pega a caneca de café e vai até a porta como se fosse saudar o dia. Mas fica ali a balbuciar _ As manhãs daqui não são como as de Santo Amaro do Camapuã. Êta saudade de Minas Gerais… _ Ocê pare é de reclamar, viu. Há mais de trinta anos mora aqui e ainda não se acostumou? E tem mais, ficar remoendo saudade só serve é prá pisar o coração da gente. Resolve nada não.Vá se arrumando pras suas obrigações, dê um jeito de cumprir seus compromissos, eu vou é voltar pra cama. Até. Não houve beijos, abraço, nem nada. Foi assim, seco.

Ele queria mesmo era um cavalo mas pegou foi sua bicicleta. Cavalo tinha mais não. Nas cidades grandes num dá pra cuidar de criação alguma. Amarrou suas ferramentas e pedalou rumo ao centro da cidade. Era de opinião. Na sua profissão era obrigação chegar cedinho pra não ficar mexendo com algumas plantas sob sol quente demais. Dia amanhecido chegou na casa de D. Florbela. Dia da semana combinado, sagrado pra seu jardim. Toda semana. Já era esperado. Outro café, pão fresco e dedinho de prosa com a Conceição, antiga da casa. Prosa rápida. Você num sabe, vi hoje na vinda prá cá, coisa mais linda. Diga, homem. Num poste desses de energia, destes de beira de estrada havia uma coruja. Precisava ver. Duas asinhas abertas, ali… Olha, juro pra você, ela quentava sol. E ao passar empavonou-se como se acenasse manhãzinha. Mas, prenda os cachorros pois já vou indo pro jardim. Obrigado pelo café. Até.

Já era por volta de meio dia e ele ali. Conversava com as plantas, xingava, sabe-se lá quem nem porque, espantava os pardais pois queriam esparramar suas sementes. Mas feliz também. Cantarolava modas, assoviava canções, gargalhava. Parava um pouco pra um gole d’água, um cigarro e secava com o lenço amarelado de poeira, terra e saudade o suor a lhe escorrer impertinente. Repetia dia inteiro esse ritual. Pelo meio da tarde o tempo fechou e choveu, segundo ele, fora de hora. Num dava pra esperar terminar pra  depois chover? Muito bem vinda dona chuva, mas fora de hora muito atrapalha e pouco ajuda, resmungou carinhosamente. A tardezinha arruma de novo suas coisas e as amarra em sua bicicleta. Apenas um embrulho de folhas e embira, ainda a ser arrematado, dificultava sua ida pra casa.

Vamos sentar ali na sombra. Só o tempo de um cigarro, disse-me ele. Seu olhar perscrutava cada flor, os arbustos, nuvens bailando aos céus. Prestava atenção aos beija-flores, as abelhas e aos passarinhos. Absorto, admirava. Mostrava-me canteiros onde eu não via  nada além de montes de terra. Ali estão semeadas begônias, magnólias e petúnias.  Do outro lado vou plantar  rosas e margaridas. E no centro cravos, jasmins e açucenas. Depois do pé de manacá, cortarei a grama … Foi assim descrevendo cada canto do jardim, os canteiros semeados, a  floração, como era a colheita de sementes e de flores, as dificuldades das podas e os estragos das ervas daninhas. Disso ele sabia tudo, afinal fazia isso há mais de trinta anos. Eu não sabia era do quanto mais ele sabia.

Foi dizendo… Olha, as flores me ensinam a ver o mundo como as vezes ninguém ensina. Aprendo com elas. Aprendi o tempo de semear. Não se semeia só porque a gente quer e nem é conforme o nosso desejo. Deve-se respeitar a natureza de cada planta. Aprendi sobre o tempo da semente germinar e brotar do chão. É singular a história e o percurso de cada uma delas.  Nenhuma é igual a outra, como os dedos da mão, como as pessoas. Entre nós ninguém deveria ser igual também. Mas há alguma coisa diferente se as comparamos com gente. Gente cede ao querer dos patrões, de quem tem poder, de quem é mais forte. Ai vai ficando uns iguais aos outros.Tudo igual. Planta num é assim não. Cada qual com sua particularidade. Ou a gente respeita ou ela num vinga. Aprendi também sobre o tempo de estiagem e da necessidade de respeitá-lo. Num adianta forçar a natureza. Se o broto vem forçado num presta pra nada. Num produz semente boa. Ah, e as estações do ano, moço, imagine, há quem ache feia a estação de seca  pois  num tem nada para apreciar. As pessoas não compreendem o tempo de preparo, o quanto é necessário para daqui a pouco vir a primavera, e depois o
outono e depois o verão. Num se tem mais noção da necessidade de recolhimento. Dos tempos de gestação. Todo mundo tem  muita, muita pressa. Quer fazer das estações um brinquedinho  pra mudá-las conforme conveniência, como se muda os canais da TV com um controle remoto. Dá pra mandar na natureza? Dá não. Por isso os jardins estão cada vez mais abandonados. Jardineiros cada vez mais deixam seus jardins pra irem fazer coisas sem graça e sem necessidade. Jardins são necessários. Jardineiros também. As plantas ensinam tanto quanto um doutor de faculdade com muitos livros lidos ou falando muitas línguas. Mas ninguém mais presta atenção nos jardineiros. Nem nas flores, nas avezinhas se adaptando a selva de pedra, nem na natureza. Você sabe quantos jardineiros têm todos os dias perto da sua casa, no seu condomínio, na sua avenida? Talvez não. Jardineiro ainda num é eletrônico. Ainda pensa. É louco. Fala com as plantas. Ri sozinho, aprecia o movimento das nuvens. Sabe respeitar o tempo das flores. Sabe deixá-las cair, deixá-las para os beija-flores, para as abelhas trabalharem, para os passarinhos se aninharem, florescer em multicores.

Vá lá, sua tia chama outra vez. Senão, ao visitá-la de novo ela não deixará você ficar de prosa aqui comigo. Vai. Estou indo também. O sol vai se pondo, preguiçosamente. Suado, toma sua bicicleta e vai pra casa. Sua mulher já o espera com a janta esquentada. Ele a abraça e de surpresa mostra-lhe aquele embrulho trazido em sua garupa. Oferta-lhe, olhos e lábios em sorriso, um ramalhete de flores do campo colhidas ao longo da estrada. O jardineiro vê flores onde normalmente a pressa não nos permite. Ela lhe dá um beijo e lhe serve a janta com carinho. E cheia de alegria arranja no vaso as suas flores. O aroma e as cores espalham-se pela casa que vai anoitecendo.

Taubaté, 23de novembro de 2011

 

 

 

 

 

 

2 Responses to “O Jardineiro”

By João Batista - 24 novembro 2011 Responder

Belo texto, Gilberto.
Parabéns!
Você domina a escrita em todos os aspectos.
Um abraço.

By Guilherme - 17 dezembro 2011 Responder

Bonito texto, Gilberto!
Legal o ritmo. Acho que esse já sai da crônica e vai pro conto, até mesmo pelo tamanho e pela forma que você usou para abordar as coisas.
Desculpe a demora para ler o texto.
Abração!

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