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A Arte em desabrigo

 Crônica

 

Escultura do Jeca Tatu feita em nov/99, pelos escultores Raymundo Ribeiro, Aristeu Monteiro e Marcos Gomes localizada na Praça Dr Barbosa de Oliveira, Taubaté, SP, e está sendo carcomida pelo tempo devido ao descuido das autoridades públicas que não cuidam do que está relacionado à arte. Cuidar da arte e da cultura não gera dividendos financeiros nem eleitoreiros. Conscientiza e pessoas conscientes não interessam a quem só quer o poder. Foto Gilberto Rodrigues

É o começo de uma tarde de sábado. Ensolarada. Ainda é primavera, tempo ameno, saudável. A quentura não é incômoda. Fico pensando… Além dos shoppings centers, para onde podemos convidar alguém para assistir a um filme? Para os cinemas seria a resposta óbvia se todos eles não tivessem se transformado em templos de igrejas protestantes. Mas o que me leva, em plena tarde de sábado, a questionar uma coisa já tão sabida? Tão óbvia?

Explico. É que acabei de voltar da cidade de Pindamonhangaba, onde fui ver o que aproveitava do espólio da biblioteca da Faculdade de Música da cidade. É isto mesmo. A Faculdade fechou e sua biblioteca está aberta para quem quiser ir até lá e comprar o que lhe parecer interessante. Livros de história da música a 10,00. CDs a 1,00. Não questiono as razões que levaram ao fechamento da Faculdade. Enquanto escrevo escuto Mário de Andrade cantado por Teca Calazans. Ouço José Maurício Nunes Garcia, Maura Moreira, Pixinguinha, Villa-Lobos, Patápio Silva, Luizinho Eça. Estavam lá… Para serem levados, para liberar o espaço do que fora um dia uma biblioteca de uma Faculdade de Música.
A cena é esquisita. Para quem é acostumado ao silêncio, à ordem, ao cuidado que se tem em uma biblioteca é muito estranho ver aquela desordem, aquele mundo onde cada qual trata com indiferença o que não lhe interessa levar. Aquela deferência aos livros que sempre teve quem neles aprendeu alguma coisa, ou muita coisa, ou tudo o que sabe, ou com eles viajou mundos reais, imaginários ou simbólicos, ali não existia. Quisera levar tudo, todos. Levá-los para cuidar deles. Trouxe alguns. Espero que cuide dos outros, quem os levou.
Fico pensando na superficialidade com que o mundo tem tratado o que é profundo. A música é algo profundo. Toda Arte é profunda. Parece que não há mais tempo para que as coisas profundas do mundo, da vida, sejam curtidas, maturem, descansem para depois florescerem, desabrocharem, penderem em frutos e produzir sementes donde desabrochará algo novo. E com potenciais de profundidade. A superficialidade fugaz de cada coisa, a descartabilidade de todas as coisas, parece-me, torna-se mais atraente, mais interessante além de não causar incômodo algum se perdidas, afinal o que valem mesmo? Nada. Uma biblioteca, livros, discos, filmes, quadros, ilustrações, artesanatos, esculturas, provocam reflexões, discussões, dúvidas. Respondem nunca nada. E isso é encantador, é fascinante. Sedutor. Seria essa a razão de seu desaparecimento? Não querem mais os moços e as moças destes tempos pensar, ficar em dúvidas, refletir? Será que é saudosismo piegas lamentar o fechamento de uma biblioteca? E olhe que não é uma biblioteca qualquer – é a biblioteca de uma Faculdade de Música! Pieguice ou não, lamento sim o fechamento de tantas das nossas salas de cinema, de nossos clubes de leitura, de bibliotecas.
Continuo a pensar… Livros cada vez mais cansam. Ler cada vez mais é incômodo, dizem quem nunca leu um clássico – Érico Veríssimo, Drummond, Victor Hugo, Cecília Meireles, Euclides da Cunha, João Cabral de Mello Neto, Bandeira, Gullar, Mario de Andrade, etc. Ouvir músicas está cada vez mais démodé – sim, ouvir música como atividade principal, com a veneração que ela pede, quando você fica ali, naquele lugar, só para ouvir, apreciar, degustar, saborear – e não música como um barulho qualquer enquanto se desvencilha uma atividade qualquer, para um resultado qualquer. Como será vista hoje uma pessoa que disser que deseja fazer uma faculdade de música? Será que com os mesmos olhos com os quais se olharia alguém que desejasse fazer medicina, direito, engenharia, ou outra que tem uma promessa de emprego certo e um bom salário já mesmo antes do seu término?

... assim os livros estavam lá, esperando quem os quisesse levar...

Há algo errado. Onde? O que está errado? A literatura hoje é lida em resumos de clássicos. Estes não servem nem para segurar a porta aos ventos, pois dão traça. Nem para enfeitar estantes, pois não são olhados como algo que enfeita, mas como algo que junta pó, dá alergia. Qual é o lugar que reserva o mundo de hoje para os artistas? – pintores, poetas, músicos, escritores, ilustradores, artesãos, escultores e outros fazedores de Arte. – Naturalmente falo dos bons. Daqueles que têm consistência, conteúdo, uma história pra contar, algo para acrescentar a cada um de nós que os apreciarem. Daqueles que não foram construídos na frivolidade  do sucesso fugaz. Eles têm ainda um lugar, ou estão sobrando pra eles apenas cômodos apertados em nossas casas, cantos particulares, pois a coisa pública está cada vez mais sustentada no verniz da inconseqüência e do descaso com a Arte de modo geral?

É. É assim mesmo que estou me sentindo… Desolado e com raiva. Atônito. Perdido. Deslocado. Desentendido deste lugar onde me encontro. Ainda gosto de livros, de uma boa música, de fazer poesia, de ler as crônicas da Cecília Meireles ou da Martha Medeiros. De ouvir um Villa-Lobos ou um Milton Nascimento. Ou viajar numa viola caipira tocada por um Roberto Corrêa ou um Renato Andrade.
Entristecido, desolado, recolho-me em meu desconsolo por ver situações como esta acontecendo com toda a indiferença que é capaz de ter o ser humano que está preocupado, neste sábado, em apenas aproveitar as promoções que fazem as lojas por ocasião do dia das crianças.
Vou fazer poemas. Ouvir músicas. Semana que vem há um feriado, mas poucos o aproveitarão para construírem uma questão sobre o significado do mundo da Arte, afinal este mundo da arte é trabalhoso e ainda não é descartável. Quando somos tocados por ele temos que nos haver com ele, que dar conta dele, e, por conseqüência, de nós mesmos…
Agora vou limpar e guardar os discos e os livros que trouxe da biblioteca que fechou.
 08.10.2011

3 Responses to “A Arte em desabrigo”

By Rogerio - 10 outubro 2011 Responder

Muito boa sua crônica. Você conseguiu expressar a essência, no que realmente está se tornando nosso mundo hoje. Parabéns! Continue exercendo o dom da escrita e das palavras. Você é bom nisso. Abraços, rogerio

By Maura Lídia - 13 outubro 2011 Responder

É mesmo triste uma situação assim….Muito apropriada sua crônica…O que é bom está perdendo espaço para as produções que vendem na mídia. Eu também sou saudosista nesse aspecto…
Parabéns pelo texto..
abçs
Maura

By Guilherme - 22 outubro 2011 Responder

Bonita a crônica, Gilberto!
Gosto de abordar esses assuntos nas crônicas, é uma reflexão em dose pequena que a gente oferece ao leitor. Não tenho críticas negativas a te fazer, embora goste muito quando me apontam as falhas. A única coisa que eu posso te falar é que a palavra “biblioteca” aparece dez vezes, talvez um sinônimo daria um jeito na repetição. E, também, o leitor pode experimentar uma certa falta de ar no trecho “onde fui ver o que aproveitava do espólio da biblioteca da Faculdade de Música da cidade.” Do, da, da, de, da.
Abração, meu camarada! Me avise quando botar mais prosa por aqui.
Guilherme

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